Zé Leôncio de 'Pantanal', Marcos Palmeira viu região empobrecer e investe em fazenda orgânica

Atração levou para a TV cenas reais de queimadas no bioma; 'Uma floresta em pé é muito mais rica que uma floresta deitada', diz ator que esteve nas duas versões da novela

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Por Emilio Sant'Anna
Atualização:

Sentado ao lado do pai, Joventino fala sobre extremos climáticos, sustentabilidade e que chegou a hora de levar para a fazenda o sistema de produção em agroflorestas. Ressabiado, Zé Leôncio responde que isso é um enrosco maior do que um Leôncio pode lidar. “E dois Leôncios?”, pergunta o filho. O abraço entre eles sela o aval à proposta. 

Marcos Palmeira em sua fazenda Vale das Palmeiras, em Teresópolis, onde planta orgânicos Foto: Ronaldo Nina/Divulgação

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Na semana em que a cena de Pantanal foi ao ar, a novela já colecionava algumas das melhores marcas da TV dos últimos anos. A produção também usou imagens reais de incêndios no bioma para mostrar ao Brasil o flagelo que ameaça a maior área úmida continental do planeta. Os 32 anos que separam a exibição da novela original, na extinta TV Manchete, e o remake, na Globo, revelam o avanço da pauta ambiental no Brasil.

“A diferença é perceptível da primeira temporada para essa. Era uma época de cheias. Agora está numa época de mais de dois anos de seca constante, com queimadas violentas todos os anos. É muito clara a presença do homem e a sua interferência empobrecendo o bioma”, disse ao Estadão o ator Marcos Palmeira, presente nas duas versões. Na produção original, de 1990, ele dava vida a Tadeu, filho de Zé Leôncio, na versão atual, aos 58 anos, é o próprio protagonista. 

Marcos Palmeira em área de sua fazenda que será reflorestada com mudas da Mata Atlântica. Foto: Ronaldo Nino/Divulgação

As três décadas revelam também a relação do ator com o meio ambiente. A imersão pantaneira não era a primeira experiência distante das grandes cidades. Havia dez anos, ele passara dois meses na aldeia Xavante de São Pedro (MT), onde recebeu o nome indígena de Tsiwari, ou "o Filho Valente". 

Dois anos depois, se aventurou por trinta dias entre os Arara, no Pará, ao lado do fotógrafo Luís Carlos Saldanha, que fazia um documentário. Nessa viagem, se descobriu ator. “Minha experiência com os índios me trouxe outro olhar para o meio ambiente, o entendimento da importância que as comunidades indígenas têm no Brasil como um todo e que valorizamos pouco”, diz ele, que também trabalhou no Museu do Índio, no Rio.

Vinte e cinco anos depois, Palmeira retornou a Mato Grosso para rodar o documentário Expedição A'Uwe - A volta de Tsiwari. Àquela altura, em 2004, já era também agricultor, dono de uma fazenda de 200 hectares em Teresópolis, Região Serrana do Rio. Comprada em meados dos anos 1990, a propriedade é uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) e também produtora orgânica certificada de queijo, iogurte, laticínios, mel, chocolate, café e hortaliças. Tudo isso dá origem a uma marca que leva seu sobrenome e seu rosto. 

“Como produtor rural, quando fui trabalhar com a agricultura orgânica, entendi o que significa a palavra sustentabilidade, agrofloresta, biodinâmica, permacultura”, diz Palmeira. “Foi aí que entendi esse maravilhoso mundo dos orgânicos, da minha experiência com a fazenda, de uma situação muito simples, quando descobri que um funcionário não comia aquilo que ele estava plantando. Aí as fichas todas caíram e entendi o que que era aquele agrotóxico.”

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Novelas conseguem pautar temas socioambientais

Na semana em que as cenas de incêndios reais no Pantanal foram ao ar, os 29 pontos de audiência da novela equivalem a dizer que a mensagem atingiu mais de 20 milhões de pessoas, ou quase 10% da população brasileira. Fora o alcance na internet. Em tempos de streaming e mudanças nos hábitos de consumo de teledramaturgia, a produção repetiu o fenômeno de outras novelas que marcaram época ao influenciar a opinião pública e refletir sobre a realidade. 

Desse processo, chamado de merchandising social, já lançaram mão autores como Manoel Carlos e Glória Perez. Na década de 1990, com depoimentos reais, Explode Coração, por exemplo, levou para a TV o drama das mães de filhos desaparecidos. 

Pesquisadora de teledramaturgia e doutora em Comunicação, Adriana Coca reflete sobre o alcance e o poder dessas mensagens. “A telenovela é uma matriz cultural da América Latina, a TV dialoga com muita gente”, afirma. “Imagine o impulso que a questão das crianças desaparecidas teve depois da novela da Glória Perez.”

 

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Para o biólogo e diretor de comunicação do Instituto SOS Pantanal, Gustavo Figueiroa, o merchandising social da novela tem resultados imediatos, mensuráveis pela audiência. Quanto a nascer daí uma mudança da realidade, ele é menos confiante. “Temos visto muitos problemas em nível federal e estadual que afetam o Pantanal. Acredito que virão mudanças pontuais, mas não por enquanto”, afirma.

Ele, porém, lembra que não apenas a pauta ambiental se destaca. Em capítulo recente, após a chegada à fazenda do personagem Zaquieu, um mordomo gay, interpretado por Silvero Pereira, a homofobia foi abordada na trama. “A cena do Zé Leôncio dizendo para os peões que haviam zombado do Zaquieu, que aquilo é homofobia, e explicando o que quer dizer é o tipo da coisa que faz as pessoas entenderem, porque é uma mensagem que é passada no meio de um entretenimento”, afirma.

Mesmo assim, nem só de unanimidades vive Pantanal. Entre a enxurrada de posts nas redes sociais sobre as cenas de incêndios reais, houve também quem criticasse a novela por mostrar o problema, mas não apontar a autoria das queimadas–  investigações já apontaram, por exemplo, para a suspeita de envolvimento de produtores rurais com atuação irregular.

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“Uma imagem como aquela fala por mil palavras. O público se identifica e entende, consegue ver que o Pantanal realmente está sofrendo e precisando de ajuda”, diz Marcos Palmeira. O tempo irá dizer se Pantanal trará para a questão ambiental os mesmos efeitos da novela de Glória Perez. A mensagem dada pelo remake já ressoa em um país que mudou, ainda que de forma desigual, nesses 32 anos.

Quando ela foi ao ar pela primeira vez, o Brasil se preparava para receber a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, que ficou conhecida como Rio-92. Entrou para a história por ser o primeiro grande evento a tratar do tema vinte anos após a pioneira Conferência de Estocolmo, com tema ambiental. Além de marcar o compromisso de chefes de Estado com a preservação ambiental e o desenvolvimento social equilibrado, o mega-evento em terras brasileiras trouxe para a agenda pública o debate sobre o meio ambiente como nunca antes acontecera. 

“As pessoas hoje estão mais conscientes, mas ainda é muito longe do entendimento real da urgência do que a gente está vivendo. Ainda se fala muito que são crises, são ciclos, só que a gente não percebe que os ciclos são cada vez menores. É um espaço de tempo mais curtos e entre um ciclo e o outro, não tem nenhuma interferência do homempara evitar que se repita”, diz Marco Palmeira.

Dois anos antes, em 1990, a novela havia escancarado para o País os cenários naturais deslumbrantes de um Pantanal até então desconhecido da maioria dos brasileiros. Tuiuiús, jacarés, rios, lagos e lagoas de águas cristalinas revelavam um ativo ambiental de valor incalculável e traziam para a sala das casas o ideal idílico de um Brasil que assumia suas origens rurais em contraste com as produções televisivas centralizadas no Rio e em São Paulo.

Árvores gigantescas foram queimadas no Pantanal do Mato Grosso por incêndios em 2020 Foto: Dida Sampaio / Estadão

Pantanal é o bioma mais afetado pelos incêndios

Nesses 32 anos, enquanto o foco, naturalmente, se manteve maior sobre a Amazônia, o Pantanal também sofreu com a ação de atividades econômicas, como a pecuária extensiva e as plantações de soja.Dois levantamentos da plataforma MapBiomas dão a exata noção do problema. Imagens de satélite captadas entre 1985 e 2020 mostram que em cada um desses 36 anos, o Brasil queimou área maior que a da Inglaterra. Foram 150.957 km² por ano, ou 1,8% do território nacional. A extensão acumulada nesse período representa quase 20% do mapa brasileiro. Nenhum bioma foi mais afetado que o Pantanal: 57% de seu território foi queimado pelo menos uma vez entre esses anos. 

Nesses mesmos 35 anos, de acordo com a plataforma, que reúne universidades, organizações ambientais e empresas de tecnologia, 15,7% da superfície de água do Brasil desapareceu. Mais um vez, o Pantanal foi a maior vítima. No Estado mais afetado, Mato Grosso do Sul, mais da metade (57%) de todo o recurso hídrico foi perdido desde 1990.

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Se na fazenda de Marcos Palmeira, a agrofloresta (lá do início do texto) é uma das formas de produção, esse sistema que une cultivos agrícolas com florestas perenes e criações de animais, caberia na fazenda de Zé Leôncio e no Pantanal também? “Sem dúvida, a agrofloresta pode ser uma solução muito interessante, (assim como) a permacultura. A gente tem de romper com esse conceito de que só (serve) para propriedades pequenas, Os grandes fazendeiros têm que ter um outro olhar para suas próprias terras”, diz o ator. “Uma floresta em pé é muito mais rica que uma floresta deitada.”

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