Governo federal usa só 22% das verbas contra desmate e queimadas

De R$ 384,9 milhões existentes no caixa federal, apenas R$ 83,5 milhões foram usados até setembro pelo Ibama e pelo ICMBio; sucateamento dos quadros é um dos problemas

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Por André Borges
Atualização:

BRASÍLIA - Em meio a índices recordes de desmatamento e de queimadas no País, o problema não se resume à pouca destinação de recursos para a área. Até o fim de setembro, o Ibama e o Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio), responsáveis pela gestão ambiental, tinham R$ 384,9 milhões para, especificamente, ações contra o desmatamento e as queimadas. Dentro dessa cifra estão o orçamento federal, definido todo ano, pedidos de créditos extraordinários e emendas parlamentares. Ocorre que, até a última semana do mês passado, apenas R$ 83,5 milhões desse montante (22%) haviam sido efetivamente utilizados. 

Os dados oficiais, que foram compilados pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), apontam que outros R$ 187,5 milhões chegaram a ser empenhados – ou seja, reservados para pagamentos futuros –, mas isso não significa que esses repasses ocorrerão em 2021. Na prática, grande parte pode ser quitada só no ano que vem – quando haverá outro orçamento à disposição.

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Parte dos recursos disponíveis neste ano se deve a um crédito extraordinário solicitado pelo próprio governo, após a pressão interna e externa que tem sofrido por causa do descontrole do desmate e das queimadas. Em junho, o Congresso Nacional votou a favor dessa ampliação, fazendo com que o orçamento inicialmente previsto – de R$ 135,1 milhões – chegasse aos atuais R$ 384,9 milhões. O efeito prático desse reforço, porém, não se vê nas florestas nacionais.

"O desempenho na execução mostra-se problemático, considerando-se o período mais crítico de incêndios e queimadas, entre julho e outubro, e o encerramento do ano fiscal a praticamente três meses", diz Alessandra Cardoso, assessora política do Inesc.

Sucateamento

Por trás da letargia dos órgãos ambientais em executarem seus trabalhos estão problemas como a falta de pessoal especializado, devido ao sucateamento progressivo do quadro profissional, além da nomeação de pessoal militar sem conhecimento técnico do setor. O cenário se agravou ainda mais neste ano, quando o Ibama ficou praticamente paralisado por três meses, com o afastamento de toda a cúpula do órgão, alvo de investigações da PF sobre possíveis esquemas de exportação ilegal de madeira – episódio que levou à queda do ex-ministro do MMA, Ricardo Salles.

Ibama, principal órgão do governo federal na proteção da Amazônia, perdeu 45% dos fiscais em 10 anos. Foto: Vinícius Mendonça/Ibama

A baixa execução orçamentária afeta as ações de combate em pleno período de estiagem. Até o fim de setembro, o Ibama tinha R$ 59,4 milhões para "prevenção e controle de incêndio", mas só R$ 14,9 milhões tinham sido sacados. No ICMBio, a cifra disponível contra as queimadas chegava a R$ 74,2 milhões e menos da metade – R$ 35 milhões – foi usada.

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"A baixa execução, considerando-se o auge das queimadas, demonstra as dificuldades que o Ibama e o ICMBio têm para gastar recursos, problema que não pode ser dissociado da falta de pessoal nem do desmonte das normativas de fiscalização do órgão", comenta Alessandra Cardoso, assessora política do Inesc. 

"Não adianta reforçar os recursos da fiscalização, por exemplo, e não ter servidores para julgar os processos sancionadores ambientais. O não julgamento tira toda a força dos autos de infração. Cabe lembrar que o País tem recursos disponíveis que não está usando, como os R$2,9 bilhões parados no Fundo Amazônia, desde janeiro de 2019", diz Suely Araújo, especialista sênior em políticas públicas da organização Observatório do Clima.

Para 2022, o orçamento federal prevê R$ 327,8 milhões para ações de controle e combate ao desmatamento e queimadas em Ibama e ICMBio. A questão é saber do uso. 

Após a publicação da reportagem, o Ibama informou que o crédito suplementar, autorizado em 10 de junho, “veio seguido de uma série de procedimentos necessários para uma execução planejada, que atendesse aos planos das ações de fiscalização, mantendo-se o cuidado com as boas práticas que garantem a legalidade e a eficiência com o gasto público”.

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O órgão declarou que, em relação ao orçamento inicialmente aprovado na Lei Orçamentária, o Ibama já executou 94%. “Além disso, existem outras licitações em andamento que vão resultar, até o final de 2021, num alto percentual de execução orçamentária.”

Já o ICMBio afirmou que “considera satisfatória a execução, próxima à integralidade, dos recursos orçamentários e financeiros”. Segundo o órgão, em 2021 houve significativo acréscimo (340%) para as ações de fiscalização, prevenção e combate a incêndios, passando para R$ 73.981.233,00. “Deste montante, R$ 60.380.243,11 (81%) estão executados e a previsão é de execução na integralidade até o final do ano”.

O órgão, porém, não detalha o que chama de execução, já que boa parte desse recurso pode estar apenas empenhado, ou seja, ainda não foi pago, além de a possibilidade de seu uso estar atrelado a restos a pagar de anos anteriores.  Segundo o ICMBio, com essa verba o órgão “ampliou o seu efetivo de brigadistas, adquiriu veículos para combate a incêndios e fiscalização ambiental e ampliou o uso de aeronaves para combate a incêndios”.

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“O ICMBio ressalta que executou integralmente, em 2020, recursos advindos de órgãos parceiros, os quais totalizaram R$ 40,6 milhões: sendo R$ 19,1 da Defesa Civil, R$ 7,5 milhões do Ibama e R$ 14 milhões decorrentes de recursos recuperados da Operação Lava Jato. Para 2021, há ainda a expectativa de recebimento de R$ 20 milhões da Defesa Civil, R$ 13 milhões do Ibama e R$ 15 milhões de crédito suplementar, cujo pedido está tramitando no âmbito do Congresso”, declarou o órgão. Conforme o instituto, em 2020 o órgão recebeu o montante de R$ 21.663.527 para ações de fiscalização, prevenção e combate a incêndios, dos quais R$ 21.258.999,81 foram executados.

3 perguntas para...

...Suely Araújo, especialista sênior em políticas públicas da organização Observatório do Clima e ex-presidente do Ibama na gestão de Michel Temer

Por que o Ibama e o ICMBio não gastam aquilo que recebem?

Dois fatores explicativos preponderam: o número reduzido de servidores, especialmente de agentes de fiscalização, e a inexperiência dos gestores colocados em cargos de coordenação no atual governo. A impressão que dá é que o governo não tem ideia de como executar esses recursos num quadro de carência de pessoal. Não é simples, mas gestores com conhecimento da dinâmica da autarquia conseguiriam se virar nesse sentido. Em maio deste ano, houve suplementação relevante de recursos no Ibama para duas ações orçamentárias, a fiscalização ambiental e a prevenção e controle de incêndios florestais, mas a execução realmente está baixa, considerando que temos pouco mais de 60 dias para o fechamento do ano.

O que é preciso fazer para que os recursos de fiscalização sejam efetivamente aplicados?

O número de fiscais teria de ser mais do que dobrado no caso do Ibama e reforçado no ICMBio. O problema é que o concurso que foi autorizado está longe de resolver essa situação. Centraram as vagas nos servidores de nível médio, que não suprirão as demandas da fiscalização ambiental. Fiscalização ambiental em 2021 não é feita chutando a porteira de fazenda ou a porta de serraria. Precisa de agentes com muita formação técnica, para atuação com cruzamento de dados públicos, análise de imagens de satélite e atividades de inteligência. O foco deve ser a contratação de analistas de nível superior, até mesmo para as operações remotas poderem ser reforçadas. Para a efetiva aplicação, há necessidade, também, de trocas nas coordenações das duas autarquias, com priorização de servidores do próprio órgão que conheçam realmente as tarefas a serem executadas.

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Falta dinheiro para a proteção do meio ambiente?

Falta, porque a proteção do meio ambiente vai muito além da fiscalização ambiental. A suplementação orçamentária que ocorreu em 2021 abrangeu apenas duas ações no Ibama e duas no ICMBio. As duas autarquias têm atribuições amplas. Não adianta reforçar os recursos da fiscalização, por exemplo, e não ter servidores para julgar os processos sancionadores ambientais. O não julgamento tira toda a força dos autos de infração. Cabe lembrar que o País tem recursos disponíveis que não está usando, como os R$2,9 bilhões parados no Fundo Amazônia, por implicância do ex-ministro Ricardo Salles, desde janeiro de 2019. Esse caso é objeto, inclusive, de uma ação no Supremo Tribunal Federal.

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