Reduzir desigualdades é essencial para tornar cidades sustentáveis, destacam especialistas

Expansão desordenada criou cidades espraiadas, desiguais e repletas de problemas urbanísticos, especialmente de mobilidade, saneamento básico, habitação e acesso a lazer e serviços; exemplos de países vizinhos mostram que é possível mudar

Publicidade

Por Priscila Mengue
5 min de leitura

Os países latino-americanos acumulam um passivo que torna o desenvolvimento urbano sustentável mais urgente e complexo. Enquanto capitais europeias cresceram ao longo de séculos, São Paulo, Cidade do México, Bogotá, Buenos Aires e outras vizinhas enfrentaram um crescimento por vezes informal, desordenado e rápido nos últimos 100 anos.

A expansão caótica criou cidades espraiadas, desiguais e repletas de problemas urbanísticos, especialmente de mobilidade, saneamento básico, habitação e acesso a lazer e serviços. Entre especialistas, uma retomada verde nas cidades somente ocorrerá se o planejamento urbano reduzir essas diferenças. “A gente não pode falar em cidades sustentáveis sem falar em justiça social. Quando se fala de sustentabilidade, ela envolve o domínio ambiental, o social e a dimensão econômica”, defende Fabiano Lemes de Oliveira, professor de Urbanismo da universidade Politécnico de Milão.

Trecho da RuaAvanhandava, na região central de São Paulo, passou por intervenção urbana para se tornar mais amigável para pedestres e turistas Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Ele cita como exemplo Medellín, que se tornou referência mundial com projetos urbanos para melhorias e inclusão das populações mais marginalizadas, com a criação de bibliotecas-parques e a implantação de uma rede de teleféricos integrada à de metrô. “Fez uma transformação radical naquele entorno. O próprio projeto Favela-Bairro (criado nos anos 90, no Rio) teve aspectos muito positivos, de transformação das comunidades (com implantação de equipamentos públicos, praças e outras melhorias urbanas).”

A exemplo da cidade colombiana, antes conhecida pelos altos índices de violência, o professor acredita que as capitais brasileiras podem se reinventar. “Temos um potencial tão grande e inexplorado que as cidades brasileiras poderiam em algum momento se transformarem em exemplos positivos para contextos tropicais, para outros contextos para além do nosso País.”

Para isso, políticas públicas e iniciativas privadas precisam ser repensadas. Não há mais sentido investir em habitação em áreas sem infraestrutura no entorno.

Continua após a publicidade

Um dos problemas que se tem no Brasil é que pouco se faz cidade hoje em dia. Se faz muitos condomínios fechados, mas isso não é fazer cidade de fato, o próprio condomínio tenta se fechar contra a cidade”, diz. “Quando a gente fala de fazer cidade, a gente fala de usos múltiplos, diferentes grupos sociais, de conexão entre os espaços. E isso a gente não vê muito”, pontua Oliveira, que descreve São Paulo como provavelmente a “mais complexa das mais complexas metrópoles” brasileiras.

Professor do Instituto de Biociências da USP e coordenador do programa USP Cidades Globais, Marcos Buckeridge lembra que um planejamento urbano desigual não só impacta a qualidade de vida das populações menos assistidas, mas também se torna fator de risco - o que é visto na pandemia da covid-19, em que populações de mais baixa renda estão mais vulneráveis pela falta de água, moradia e infraestrutura adequadas. “A história de uma cidade determina o que ela é. São Paulo e Rio de Janeiro cometeram erros históricos.”

Ele destaca ainda que capitais brasileiras, como a paulista, têm características tão complexas, que a qualidade de infraestrutura e serviços varia dentro de um mesmo bairro e região. “Não dá mais para a cidade de São Paulo ser vista como centro e periferia, está tudo entremeado. A divisão de hoje, por subprefeituras, está desatualizada”, atesta. “Dentro de regiões em que parece que está tudo bem, tem cortiço, favela, sistemas que não funcionam da mesma forma do que a rua do lado.”

Professora do Departamento de Tecnologia de Arquitetura e Urbanismo da USP,Roberta Kronka defende o adensamento das áreas com mais profusão de serviços. “Existe um dogma de que adensar é falta de qualidade urbanística, e não tem nada a ver. Posso ter áreas com densidade baixíssima sem qualidade e super adensadas com baita qualidade humana”, diz. Para ela, nesse cenário, é preciso ter uma atuação forte do poder público para evitar a expulsão das camadas sociais mais baixas das regiões.

É o que também argumenta o urbanista Carlos Leite, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie e coordenador do Núcleo de Urbanismo Social do Laboratório de Cidades Insper-Arq.Futuro. “As cidades sempre se reinventam a partir das suas grandes crises, catástrofes e episódios de doenças gravíssimas. Aconteceu na Europa e Estados Unidos várias vezes”, lembra. “Temos uma imensa oportunidade, quase obrigação, de reinventar as cidades no Brasil. E São Paulo é a maior de todas, onde, por sua escala, os problemas são muito maiores. Ela pode e deve mostrar até um padrão de liderança.”

Para ele, a pandemia é uma oportunidade de mudança, de tornar as metrópoles mais inclusivas, deixando as periferias como reserva de água e verde. Um adensamento ideal é raridade no País, com exceção a alguns bairros de classe média e alta, como os paulistanos Higienópolis e Santa Cecília, e os cariocas Copacabana e Ipanema.

Não é mais possível viver desse jeito, com uma cidade informal, com tanta pobreza, tanta falta de infraestrutura, equipamento público, UBS, saúde, saneamento, acesso à internet, tudo”, reitera. “Cidades mais sustentáveis e inteligentes antes de mais nada, antes que isso vire rótulo, são cidades para as pessoas, saudáveis e equilibradas.”

Continua após a publicidade

Para tanto, além de resolver as desigualdades de infraestrutura, o urbanista destaca a necessidade de um bom Plano Diretor (a exemplo do paulistano) e marco regulatório para identificar as demandas locais, big data para mapear e diagnosticar problemas e participação ativa da sociedade civil. “Infelizmente, no Brasil, não temos bons casos completos de urbanismo sustentável ou trechos de cidades, ruas, com senso de urbanidade como se vê em tantos lugares do mundo. Talvez Barcelona seja o maior exemplo.”

Ele aponta que uma mudança requer duas frentes. A primeira é mais simples, com a implantação de boas calçadas, transformação das ruas com arborização, iluminação, mobiliário e afins. Já a segunda, a mais complexa, é adensar com uso misto. Ambas são interdependentes.

“Você pode fazer a primeira parte no Morumbi, em Alto de Pinheiros ou nos Jardins, por exemplo, e não vai ter ninguém usando, porque não vai ter densidade e uso misto, que é o que leva pessoas a irem a uma padaria, no mercado, na lanchonete”, diz. “A mistura de rendas também é desejável. Mas, no Brasil, há uma imensa resistência da classe média e alta de morar com outras classes.”

Por sua vez, Luis Antonio Lindau, diretor do programa de cidades do WRI Brasil, exemplifica essa necessidade de mudança de paradigma com o exemplo de governantes que pretendem investir em grandes obras de estradas no pós-pandemia, decisão que considera ultrapassada. “É uma leitura dentro da velha economia. Muito mais interessante seria direcionar essas obras para resolver problemas urbanos na escala do bairro e essas coisas mais prementes que a população está sofrendo, e que também dão empregos.”