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Procurador critica 'timidez' do ICMBio: 'Seja menos João Gilberto e mais Alcione'

Funcionário da AGU cobra de instituto responsável por unidades de conservação federais postura mais assertiva sobre a liberação para que comunidades vivam nessas áreas

Foto do author André Borges
Por André Borges
Atualização:

BRASÍLIA - Sobrou até para o criador da Bossa Nova, João Gilberto. Na tentativa de convencer a cúpula do Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio) que o órgão precisa rever sua postura “tímida” para decidir se comunidades podem, ou não, viver dentro de florestas protegidas, o procurador da Advocacia-Geral da União (AGU) junto ao ICMBio, Dilermando Gomes de Alencar, soltou o verbo contra o intérprete de Chega de saudade e disse que o instituto tem que ser mais “Alcione” ao lidar com o assunto.

'Penso que o ICMBio vem cantando de forma intimista,como João Gilberto, Nara e Fernanda Takai. Chegou a hora de abrir os pulmões e cantar de uma forma explosiva, tal qual Marilia Mendonça, Bethania e Alcione', disse procurador da AGU,Dilermando Gomes de Alencar. Foto: Marcos Hermes

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Em seu despacho encaminhado à chefia do órgão federal, documento ao qual o Estadão teve acesso, Alencar não economiza na metáfora. “Penso que o ICMBio vem cantando de forma intimista, pra dentro, como João Gilberto, Nara e Fernanda Takai. Chegou a hora de abrir os pulmões e cantar de uma forma explosiva, pra fora, como nunca cantou, tal qual Marilia Mendonça, Bethania e Alcione.” O instituto, ligado ao Ministério do Meio Ambiente, é responsável pelas unidades de conservação federais. 

As digressões musicais publicadas no documento incluíram ainda trechos de Cálice, de Chico Buarque e alusões literárias sobre o “olhar estrangeiro” da escritora Clarice Lispector. O procurador contou episódios de sua infância e achou espaço para menções a ícones do jazz, como Ella Fitzgerald e Billie Holiday

A profusão poética tinha um objetivo mais pragmático: defender que comunidades tradicionais possam permanecer em áreas de preservação integral, se assim quiserem, e que o ICMBio busque meios de compatibilizar o convívio dessas populações com a preservação ambiental da floresta.

O assunto é controverso e divide opiniões dentro do próprio instituto. Por lei, a unidade de conservação integral tem como objetivo básico preservar a natureza, sendo afastada, ao máximo possível, de interferência humana. Nessas áreas, só é permitido o uso indireto dos recursos naturais, ou seja, aquele que não envolva consumo, coleta, dano ou destruição. Acontece que, na realidade, a maior parte dessas áreas têm populações em seus interiores.

Segundo dados do próprio ICMBio, há povos tradicionais e áreas de agricultores familiares em aproximadamente 68% dessas unidades de proteção integral. Já foram identificados 124 casos de sobreposição entre essas áreas e territórios de povos e comunidades tradicionais. São 24 com presença de indígenas, 11 de quilombolas, 36 de comunidades tradicionais em geral e 53 de agricultores familiares.

Por não ter posicionamento preciso sobre como lidar com esses casos, na prática, o ICMBio tem firmado, ao longo dos anos, “termos de compromisso” com essas populações, já que, em muitos casos, a presença humana antecede a criação da área como unidade de proteção integral. Hoje há 20 termos vigentes assinados com povos e comunidades que tiveram territórios e modos de vida alterados pela criação da unidade, sendo cinco área com presença de quilombolas, uma de indígenas, nove de comunidades tradicionais em geral e cinco de agricultores familiares.

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Ao discorrer sobre o assunto, o procurador Dilermando Gomes de Alencar diz que os termos de compromisso, “embora versem sobre compatibilidade, o fazem com um viés precário (prazo determinado)”, sem uma recomendação de que o plano de manejo da área preveja acomodação das populações tradicionais. “Como canta minha conterrânea Alcione, ‘quem vive na corda bamba aprende a se equilibrar’”, afirma. “Os termos de compromisso celebrados até o presente momento não garantem segurança jurídica necessária a estabilizar as relações dentro das unidades de conservação.”

Por regra, o ICMBio tem de buscar acordos com as populações locais quando estas estão inseridas em áreas de preservação integral. Muitas destas, porém, não possuem nenhum tipo de proteção legal. “Se temos que falar em legalidade, precisamos nos dar conta de que a manutenção sucessiva e indeterminada de termos de compromisso não possui lastro em lei! Isso para os 20 termos celebrados. E como fica a omissão do ICMBio em celebrar tantos outros termos de compromisso em inumeras unidades?”, questionou Alencar, ao buscar apoio, desta vez, nas letras de Belchior.

“Se de legalidade estamos falando, o decreto é claro no sentido de que o ICMBio tem o dever de celebrar os termos. No mais, qual o êxito dos processos de desafetação (retirada da população da área)? Qual o êxito na política de realocação? Senhores, não basta amar, é preciso amar e mudar as coisas, já diz o poeta.”

A reportagem questionou o ICMBio sobre a situação irregular das unidades de proteção integral com presença de comunidades e se haverá formalização de novos acordos. Por meio de nota, o órgão federal declarou que “deve ampliar a formalização desses acordos para que haja o convívio entre esses povos e a preservação das unidades”.

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A respeito da precariedade dos termos de compromisso, o instituto afirmou que “está prospectando instrumentos de gestão de caráter permanente, juridicamente viáveis, para a conciliação de direitos dos povos e comunidades tradicionais que habitam as unidades de conservação de proteção integral, desde tempos anteriores à criação das unidades”.

As áreas de proteção integral são divididas em categorias de Estação Ecológica, Reserva Biológica, Parque Nacional, Monumento Natural e Refúgio de Vida Silvestre.  Na avaliação do procurador do Dilermando Gomes de Alencar, a decisão sobre o assunto demanda coragem. “Ao ingressar no ICMBio, eu não tive medo de falar”, escreveu. “Eu sigo com a consciência limpa como um rio virgem e vou tranquilo. E falando, sempre.”

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