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'Os mais vulneráveis são sempre os primeiros a morrer, seja na covid ou na mudança do clima'

Ana Toni, do Instituto Clima e Sociedade (iCS), fala sobre a sociedade, os empresários e os governos precisam se mobilizar para garantir que a recuperação tão necessária nesse momento torne o País mais preparado a evitar tantas novas mortes

Por Giovana Girardi
Atualização:

A pandemia de covid-19 escancarou um cenário de desigualdade social e trouxe uma consciência das conexões entre o social, o ambiental e o econômico que pode criar uma oportunidade para que pensemos um futuro com mais sustentabilidade, e que torne o País mais resiliente a uma crise que pode ser ainda mais fatal, a das mudanças climáticas.

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Essa é a análise da ambientalista Ana Toni, diretora executiva do Instituto Clima e Sociedade (iCS). Economista e doutora em Ciência Política, Ana tem uma longa trajetória de trabalho e apoio a projetos ligados a meio ambiente e mudanças climáticas e, mais recentemente, começou a criar pontes com o setor econômico.

O iCS esteve à frente da articulação que uniu 17 ex-ministros da Economia e ex-presidentes do Banco Central a divulgarem uma carta aberta pedindo que princípios que levem em conta as mudanças climáticas norteiem a retomada econômica. Em entrevista ao Estadão, como parte de uma série de lives sobre retomada verde, ela fala sobre esse movimento e como o País, sociedade, empresários e governos precisam se mobilizar para garantir que a recuperação tão necessária nesse momento torne o País mais preparado a evitar tantas novas mortes.

A pandemia gerou uma forte reação em vários cantos do mundo no sentido de que a necessidade de recuperar a economia pós-pandemia é a chance para fazermos isso de um modo mais sustentável. O que significa uma retomada verde? 

A pandemia nos fez ficar mais conscientes da relação entre o social, o ambiental e o econômico – o famoso tripé da sustentabilidade. Isso trouxe para o debate da retomada o fato de que a gente sabe que não quer voltar para o que era antes e para os problemas que tínhamos. E isso cria uma oportunidade: como todos os países terão de gastar mais, que se gaste melhor e se gaste diferente. E o que é gastar melhor e diferente? É trazer a sustentabilidade para frente.

Como você vê o Brasil nesse cenário?

O Brasil já está pensando em várias políticas de recuperação econômica, mas, infelizmente, a sensação que dá é de que o País está gastando, mas sem uma visão comum. Está muito mais respondendo a demandas de alguns setores, como automobilístico, o de gás ou da agricultura. Sem pensar se fazem sentido dentro de uma visão de País que a gente quer construir. Está dentro de uma visão de país sustentável? Já estamos gastando muitos recursos, esperaria que fosse como uma retomada sustentável. Assim como ocorreu com a Europa, que colocou as mudanças climáticas como pilar central para uma retomada econômica. O Brasil poderia fazer isso, mas tem de ter visão e fazer um planejamento não só de curto prazo, para resolver problemas de empresas e setores, mas também de longo prazo. E isso acho que a gente ainda está devendo para a sociedade.

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O que deveria estar sendo levado em conta pelo País?

Por exemplo, hoje o Brasil já dá subsídios, valores imensos da economia brasileira para setores que não são sustentáveis. A mudança deveria começar por aí. Hoje a gente subsidia uma economia não limpa, como carvão. O Brasil deveria continuar fazendo isso? Ou poderia usar o que já financia de carvão para resolver os problemas sociais acoplados à indústria do carvão? Hoje muita gente ainda depende do setor, mas isso poderia ser transformado em uma ajuda social específica para essas pessoas. Muitas empresas que atuam com o carvão também têm usinas hidrelétricas. Poderia ser feita uma troca para expandir o tempo que podem explorar as hidrelétricas enquanto fazem o phase out do carvão. Outro exemplo é que muitas cidades estão discutindo ajuda a empresas de ônibus. Por que não fazer isso de modo sustentável, pensando no longo prazo?

No caso dos ônibus o longo prazo poderia ser o que? Estabelecer datas para que a frota passe a usar combustível renovável ou se eletrifique?

Alguns municípios já estão fazendo isso nos contratos de renovação da frota, mas com a covid, em algumas cidades, como São Paulo, as empresas estão pedindo que o prazo que era de 20 anos seja estendido para 30, 40 anos. Mas não dá para esperar. Claro que vamos ter de oferecer créditos, subsídios para alguns setores, não resta dúvida, mas que não venha simplesmente para salvar economicamente, mas que traga algumas possibilidades de ter a sustentabilidade considerada nos planos de longo prazo. 

Alguns municípios adotaram contratos com previsão de renovação da frota de ônibus que circulam nas ruas Foto: Helvio Romero/Estadão

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Como o movimento de retomada verde poderá se conectar com o combate às mudanças climáticas? 

Só para deixar bem claro o que retomada verde nos proporciona: a gente sabe que alguns setores, como combustíveis fósseis, não farão parte do futuro – bem, esperamos isso, porque o planeta não aguenta. Outros são setores de transição, como eletrificação de carros. E tem alguns que ainda são muito pequenos, mas sustentáveis. A retomada verde deveria fomentar, agilizar os setores de sustentabilidade e de transição. E realmente olhar para os setores como os de combustíveis fósseis, de carros a combustão, como setores que vão ter de sair uma hora da nossa economia. Então temos de usar os recursos para fazer isso da melhor maneira possível, mas considerando qual é o tempo desse futuro que queremos. Então tem de planejar. 

Já há alguns anos se sabe que precisamos modificar muito a forma tradicional em que a economia funciona, o famoso business as usual, mas isso ainda era um papo muito forte no nicho ambientalista, ainda não tinha virado a chavinha da economia, por exemplo. Você acha que esse pode ser o momento da virada?

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A sensação é que sim, que estamos em um novo momento, que a chavinha está sendo virada. E não só por causa da covid. Acho que a covid acelerou, deu visibilidade para diversos processos, mas não inventou nada. Esses são debates que estão sendo adensados cada vez mais. E ficou muito claro que não serão resolvidos dentro da bolha. Nas últimas quatro, cinco Conferências do Clima da ONU vimos que debate está se tornando mais econômico. Mas o que demorou foi para chegar ao Brasil. Na Europa está instalado e não tem volta. Nos EUA também está instalado, não tem volta e dividiu eleições. Infelizmente ganhou o lado dos combustíveis fósseis. Demorou para chegar ao Brasil e eu fico me perguntando por que, mas acho que a carta dos 17 ex-ministros de Economia e presidentes do Banco Central, a carta do setor privado brasileiros, dos três maiores bancos demonstra que agora chegou ao core da economia. Isso porque infelizmente o debate no Brasil está muito polarizado com o governo, com a Amazônia e fez com que atores que nunca tinham se posicionado sobre o debate ambiental se sentissem na obrigação de falar sobre o tema. E fizeram isso de modo muito firme, o que é muito bem-vindo. Além disso, acho que os ambientalistas tiveram de aprender, estamos aprendendendo… nunca olhamos para o setor econômico como um aliado, como um campo com o qual poderíamos aprender. E a gente estava errado. Realmente precisamos olhar para campos específicos da área econômica como grandes aliados e criar pontes. Acho que todo mundo aprendeu nesse momento a necessidade de criar novos discursos, novas alianças. 

Falando na carta dos ex-ministros, o Instituto Clima e Sociedade esteve por trás dessa articulação. Eles cobram ações para conter o desmatamento da Amazônia e que critérios de redução das emissões de gases de efeito estufa e de resiliência aos impactos da mudança do clima sejam integrados à gestão da política econômica. Como foi esse movimento? Por que eles resolveram se manifestar assim?

Antes é importante deixar claro que a carta não fala com o governo especificamente, mas está voltada para a sociedade brasileira. A carta aponta que qualquer retomada da economia tem de considerar esses temas. E foi direcionada à sociedade porque para ter uma retomada sustentável, vai muito além do governo, é um pacto social. O Congresso tem um papel fundamental, o setor privado também. E a gente espera que o governo lidere isso. Caiu a ficha de que o Brasil tem um potencial de recursos naturais imenso e a gente tem de transformar essa vantagem, que é comparativa, em uma vantagem competitiva. Como ainda ninguém sabe muito bem como transformar esse ativo em recursos naturais em ativos financeiros, a preocupação dos ex-ministros era de que, enquanto a gente não sabe, não dá para destruir esse nosso ativo em recursos naturais. Queimar a Amazônia não está criando riqueza para o Brasil, nunca criou. Há uma preocupação de o Brasil estar abrindo mão de um potencial ativo financeiro, que é nossa riqueza natural, sem explorar de maneira pensada, coordenada, de modo sustentável. 

Muito tem se falado do potencial da bioeconomia para proteger a Amazônia, por exemplo, mas isso não substitui a necessidade de combater o desmatamento. Ou seja, por mais que todos esses atores se envolvam, é possível fazer essa transição sem a participação do governo?

De jeito nenhum. A política pública é absolutamente fundamental. Por isso a primeira parte que a carta diz que precisa fazer é combater o desmatamento ilegal. Comando e controle é fundamental, que o governo participe, mas só o comando e controle não vai ser suficiente. Isso já falava o PPCDAm (Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento). A política dos governos anteriores já falava que tinha de ter alternativas econômicas. Mas acho que ficamos só no comando e controle e desenvolvemos menos a área econômica. Não é um ou outro, tem de fazer ambos. Mas mesmo que lá atrás a gente tenha falado que era preciso desenvolver uma uma economia da floresta, essa ainda era uma conversa dentro da bolha, entre ambientalistas. Acho que o diferente agora é que esses pesos pesados – os ministros, os investidores – perceberam que eles têm de entrar na conversa. E que parar o desmatamento é fundamental, eles assinaram embaixo sobre o que diz todo ambientalista, mas também disseram que agora estão preparados para arregaçar as mangas e trabalhar para pensar como se faz para a economia verde vingar. E eles falam exatamente isso: com a ilegalidade que está acontecendo, nenhum negócio verde vai parar em pé. Não dá para competir com o ilegal, com quem não paga impostos, com quem não retorna para o Brasil os ganhos. Isso é premissa.

O governo insiste muito no discurso que o problema da Amazônia é a pobreza, que levar a alternativa econômica é que vai conter o desmatamento.

O primeiro problema é a ilegalidade. Não acho que é muito radical pedir para aplicar a lei. Estamos pedindo a legalidade, que deveria ser o normal do normal. E para aplicar a lei o comando e controle é fundamental. Mas estamos falando que pobreza também é super importante. Sim na Amazônia temos os piores índices de educação, saúde, renda. Mas a Amazônia já vem sendo desmatada há quantas décadas? E o problema da pobreza não melhorou. Desmatar não resolveu a pobreza. Então não adianta só lidar com a pobreza, tem de lidar com o desmatamento e logicamente com os temas sociais da Amazônia. As pessoas são muito pobres lá porque isso é fruto de um desmatamento ilegal, de não ter se pensado num arranjo econômico, social e ambiental da Amazônia

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Além das questões ambientais, você tem um trabalho grande também com projetos sobre justiça social e sobre filantropia. A pandemia de covid-19 escancarou nossas desigualdades e fragilidades. Quais aprendizados vc acha que podemos tirar da pandemia de covid-19, da forma como combatemos ou não combatemos, para lidarmos com uma emergência  maior que é a do aquecimento global?

Se você olhar o que são as políticas no caso de matança de pessoas negras pelas polícias – a política de segurança pública –, se olhar para a covid e para as mudanças climáticas, o que elas têm em comum? Os mais vulneráveis são sempre os que estão perdendo, que são os primeiros a morrer. O que vimos na covid, esse número de mortos, que é um horror... mas quem trabalha com clima sabe que com as mudanças climáticas o número de mortes vai ser muito maior, infelizmente. Vai ser com muito mais dor e quem vai estar na frente dessas mortes novamente são os negros, os que moram em periferia, os que estão mais vulneráveis em termos de pobreza. Então tanto a política de segurança pública, a de saúde, como vimos com a covid, e a de clima, mostram que o tema da desigualdade é absolutamente fundamental. Promover a resiliência, a adaptação nas cidades vai ser fundamental para a agenda climática brasileira. Primeiro, vamos mitigar e, segundo, vamos criar resiliência para os mais vulneráveis, porque infelizmente são novamente eles que vão pagar com suas vidas com as mudanças climáticas.

Terminamos de um jeito meio triste essa entrevista…

Mas não quero terminar triste, porque, como eu disse, eu sou otimista. Apesar de essa ser uma realidade, com uma política para a covid, poderíamos ter evitado tantas mortes, com segurança pública podemos evitar tantas mortes. E a mesma coisa com clima. A gente pode e vai evitar essas mortes.

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