Óleo ainda atinge Nordeste após um ano e investigação não aponta culpados; pandemia agrava crise

Petróleo está debaixo da terra, grudado em rochas e petrificado em fragmentos menores que a palma de uma mão; população teme que crime ambiental seja esquecido

Publicidade

Por Priscila Mengue
6 min de leitura

Não há como dizer que o derramamento de óleo na costa brasileira cicatrizou, que se tornou uma tragédia passada. Um ano depois da chegada das manchas, elas ainda estão presentes. Estão debaixo da areia e de sedimentos, depositadas no fundo de manguezais, grudadas em rochas, diluídas em moléculas pelo mar e concentradas no formato de pequenas “pedras” escuras, geralmente menores que a palma de uma mão. 

Óleo ainda está presente no litoral brasileiro, como nas rochas da praia de Itapuama, em Cabo de Santo Agostinho (PE) Foto: Carlos Ezequiel Vannoni/Estadão

O petróleo segue nas praias e na vida de milhares de pessoas, embora sua presença seja menos comentada, combatida ou explicada. A falta de respostas frustra aqueles que foram afetados e deixa o constante sentimento de que, se ocorrer de novo, tudo se repetirá e será — novamente — a população a principal responsável por atenuar o problema, expondo-se a toxicidades e trabalho intenso.

Os danos à biodiversidade são evidentes. Enquanto outros lugares pelo País vivenciaram melhorias ambientais com a diminuição do ritmo urbano e industrial na pandemia, estudos indicam um impacto que se estenderá por mais de uma década. Uma situação “catastrófica”, como descreveu um cientista que não costuma utilizar esse tipo de hipérbole.

O último balanço do Ibama, de março, aponta 130 municípios atingidos em 11 Estados, incluindo todos da região Nordeste, o Espírito Santo e o Rio de Janeiro. O primeiro foi Conde, na Paraíba, em 30 de agosto. A tragédia ambiental se repetiu nos dias e meses seguintes, com a chegada do óleo a mais de mil quilômetros de costa, afetando praias, rios, manguezais, ilhas, estuários, costões rochosos e áreas de proteção.

Marisqueiros, pescadores, artesãos e outros trabalhadores que dependem do mar (e do turismo) mal tiveram tempo de se recuperar dos prejuízos e dificuldades financeiras dessa situação. A pandemia veio e acentuou as dificuldades. Ir ao mangue, pescar, tornou-se uma alternativa para a subsistência, para conseguir o que comer. Dinheiro mesmo, quase exclusivamente na forma de doações, atividades esparsas e auxílios.

Uma dessas pessoas é Helena Ivalde, de 33 anos, a Leninha. Na terceira geração de uma família de marisqueiras, saiu de casa em uma madrugada de outubro para impedir que o óleo entrasse no manguezal. “Botei a mão no óleo mesmo. Ainda bem que não afetou o mangue daqui”, lembra. “Até agora está impune (o derramamento). Entre umas pessoas e outras, sempre se fala disso. Mas agora se fala do coronavírus mais do que tudo.”

Continua após a publicidade

A situação praticamente paralisou a compra de pescado na região, em Ipojuca, município turístico de Pernambuco, conhecido por Porto de Galinhas. As contas ficaram ainda mais apertadas para Leninha, que aluga uma casinha de um quarto, dividida com os quatro filhos, após perder a anterior em um temporal. “Está bem difícil, não está fácil não”, lamenta. “Mesmo que não venda pro turista, a gente está indo no mangue. Se não for pro mangue, não come.”

Em 2019, voluntários foram os principais responsáveis por retirar óleo de praias como Itapuama, em Cabo de Santo Agostinho (PE) Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Estimativas chegam a 350 mil e até 500 mil pescadores afetados apenas no Nordeste. A Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) ouviu 4 mil deles, dos quais 67,5% tiveram queda na renda e 59,5% afirmaram ter a pesca artesanal como única atividade econômica. 

Esse foi o caso do operador de emergência portuária desempregado Vandecio Sebastião de Santana, de 37 anos, que atuava como pescador e instrutor de passeios com stand up paddle em Cabo de Santo Agostinho, um dos municípios mais afetados em Pernambuco

Mais conhecido como Del, em 2019, ele viralizou na internet com um desabafo em que criticava as ações para conter o avanço da contaminação e lamentava os efeitos a médio prazo na natureza. “Parece que Deus colocou a mão debaixo do tapete, mostrando todas sujeiras que tem no mundo”, recorda-se. “Ou a gente cuida, ou a gente vai se lascar.”

Nascido e criado na beira da praia, filho de uma marisqueira e um pescador, ele começou a ter pesadelos com a possível chegada das manchas na comunidade em que mora semanas antes. “Foi desesperador ver a caixa de ostra cheia de óleo”, lembra. “Foram quase duas toneladas e meia tiradas só do manguezal. O dia inteiro de óleo chegando.”

Pelo contato tão próximo com a substância, ele critica a falta de acompanhamento dos que participaram da remoção do petróleo, parte dos quais tiveram sintomas na época, como náuseas, alergia e dor de cabeça. “Não sei o que pode acontecer com o meu corpo daqui a 5 anos, 10 anos”, destaca. “Não pode ficar essa dúvida. Isso aí é uma covardia com a própria saúde humana.”

Continua após a publicidade

A falta de ações para resolver e monitorar o problema faz com que Del hoje planeje montar um laboratório de forma autodidata. “O litoral é visto como se fosse o lugar para molhar a cara, dar um mergulho e tchau. Mas o oceano não é só praia. Sem natureza, a nação não sobrevive, independentemente de ter dinheiro ou não”, desabafa. “A gente precisa desse lugar, dos nossos tesouros limpos, como sempre foi.”

Com a pandemia, ele vê a comunidade em que vive abatida. “Os problemas vieram em bola de neve”, descreve. “Está deixando o povo com depressão.”

Em 2019, voluntários retiraram óleo da praia por vezes sem o uso de equipamentos de proteção individual Foto: Tiago Queiroz/Estadão

'Morreu a história. Mas o óleo ainda chega', diz moradora 

O petróleo ainda é visto também em outros Estados. Moradora de Maraú, no litoral baiano, a instrutora de mergulho e fotógrafa subaquática Stella Furlan, de 35 anos, tem três lixeiras diferentes em casa: para orgânicos, recicláveis e petróleo. 

Na praia, ela encontra a substância petrificada quase sempre. Se está de bicicleta ou caminhando, guarda e leva para casa. Assim, ao menos, o material estará longe dos organismos marinhos. Na dúvida, enterra devidamente acondicionado no próprio quintal, mas sem ter certezas de que deveria. “A gente não teve mais informação do que fazer, do que não fazer. Morreu a história. Mas o óleo ainda chega.”

Em 2019, alguns governos chegaram a destinar o material para uso como combustível de fornos industriais. Outros tantos fizeram, contudo, descarte incorreto em lixões e aterros sanitários, deixando-o exposto, em contato com o solo e desprotegido do sol e intempéries — potencializando as chances de contaminação ambiental.

Continua após a publicidade

Mergulhadora encontra óleo petrificado na praia frequentemente Foto: Stella Furlan/Arquivo pessoal

Além do lixo, Stella também se preocupa com a fauna. A poucos dias, mergulhou pela primeira vez no ano em uma área de corais. “Os peixinhos recifais, tinha pouquíssimos, os sargentinhos, as donzelinhas, as tesourinhas, que se alimentam de pequenas partículas. Os corais estão mais ainda (doentes), explica. 

Mesmo com o óleo evidente, a mergulhadora fala que foi advertida para não comentar e postar sobre a situação em redes sociais. O maior motivo é o medo de afastar o turismo. Mas ela insiste. “Eu preciso do mar para viver. Se o mar não estiver legal, o que vou fazer?”