O duro caminho até a indústria

Não basta só registrar o achado, é preciso avançar no desenvolvimento, mas poucos laboratórios investem nisso

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Por Giovana Girardi
Atualização:

Quem olha para os estudos brasileiros divulgados em publicações científicas com novidades em bioprospecção pode ter uma falsa idéia de que tudo aquilo vai virar medicamento. Na verdade, o caminho para chegar à indústria é muito mais longo e tortuoso do que o já difícil processo de garimpagem da natureza. Veja também: Especial completo sobre biodiversidade Biodiversidade, essa desconhecida Droga contra câncer em teste Estudos focam doenças tropicais Para vasculhar a Amazônia, quanto mais coleta, melhor Peixe venenoso pode render antiasmático para grávidas Múltiplas ações na vegetação paulista Remédios que vêm das toxinas Reinventar relações respeitosas Proposta de nova lei segue sem acordo Natureza inspiradora A começar pelo fato de que ele perverte a velha noção da ciência de que, ao descobrir uma novidade, o pesquisador deve torná-la disponível ao seus pares. Para a indústria, a regra é outra: patentear primeiro, publicar depois. "Se não proteger a descoberta, ninguém investe", explica William Marandola, gerente executivo da Coinfar, empresa de pesquisa e desenvolvimento que une as farmacêuticas Aché, Biolab e União Química. O problema é que patentear uma descoberta não é algo tão trivial assim. Ao menos no Brasil, o pesquisador não pode simplesmente registrar o achado de uma molécula que tem uma determinada ação. É preciso avançar no seu desenvolvimento, fazer algum melhoramento, criar um sintético etc. Mas a maior parte dos laboratórios não tem condições de fazer isso. "É o que chamamos de vale da morte da ciência", afirma o diretor do Centro de Toxicologia Aplicada (CAT), Antonio Carlos Martins de Camargo. "Não adianta só o pesquisador encontrar uma substância interessante, um potencial anti-hipertensivo, por exemplo. A indústria não está interessada, porque tem um monte por aí. Mas, se ele faz todo o desenvolvimento inicial da molécula, mostra exatamente onde ela age, se pode ter efeito colateral, se é biodisponível, quais são suas vias de ação, se compara com os análogos, aí pode haver interesse. Mas bem poucos centros fazem tudo isso." Empresas como a Coinfar têm assumido um pouco esse papel. Desde 2003, ela financia pesquisas conduzidas em universidades e institutos brasileiros, como o Butantã e o Núcleo de Bioensaios, Biossíntese e Ecofisiologia de Produtos Naturais (Nubbe), da Unesp. No momento, sete substâncias derivadas de venenos e toxinas animais estão em avaliação. Os mais promissores são um analgésico e um antitumoral (leia texto abaixo). "Nos editais que abrimos, recebemos muita coisa boa, que poderia render novas drogas, mas algumas já foram publicadas. Quando isso ocorre, o conhecimento se torna público e não temos como patentear. Aí já era. A indústria não se arrisca", diz Marandola. FALTA DE VISÃO INOVADORA Além da falta de infra-estrutura e de investimento para o desenvolvimento, Camargo acredita que existe um impedimento para o avanço tecnológico na própria postura dos pesquisadores. "Acho que, de certo modo, o cientista brasileiro ainda se comporta como o estudante adolescente que se contenta em tirar boas notas na escola e não em fazer uso desse conhecimento", afirma o pesquisador. "Às vezes, eles chegam a alguma coisa interessante, mas nem percebem que têm um potencial medicamentoso importante nas mãos." Além disso, pesa o fator tempo de dedicação ao produto, comenta o farmacologista João Calixto, da Universidade Federal de Santa Catarina, um dos pais do primeiro fitomedicamento 100% brasileiro, um antiinflamatório à base de erva-baleeira. "Entre descobrir uma substância e publicá-la, o pesquisador gasta, em média, um ou dois anos. Para fazer inovação, ele leva dez", comenta Calixto. Ele diz que dependeu da iniciativa própria para chegar até a indústria e desenvolver suas pesquisas. Atualmente, trabalha com plantas com potencial de ação para vitiligo e câncer (mais informações na página 3). Fora a problemática dos pesquisadores, Camargo lembra que, por décadas, a indústria farmacêutica também não se preocupou com inovação. "Acostumada ao lucro fácil e rápido, as empresas apenas reproduziam os produtos criados no exterior", diz. Somente nos últimos anos é que começaram a buscar produtos locais, com base na biodiversidade. "Elas faziam apenas inovações incrementais, pequenas modificações de moléculas desenvolvidas fora do Brasil. Isso quase não pede desenvolvimento científico e tem pouco impacto na geração de riquezas. As empresas também estão aprendendo a investir em pesquisa." Mas, para o pesquisador, também falta a contrapartida do governo brasileiro em oferecer um arcabouço legal que dê proteção suficiente para as empresas se arriscarem a fazer esse tipo de investimento.

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