Nove ex-ministros do Meio Ambiente protestam contra projeto da Lei Geral do Licenciamento

A avaliação deles é que a proposta, que não passou por nenhuma audiência pública para debate, gera 'insegurança jurídica e ameaça agravar a crise econômica'

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Por André Borges
Atualização:

BRASÍLIA - Nove ex-ministros do Meio Ambiente emitiram uma carta para alertar sobre os danos que podem ser causados ao setor caso seja aprovada pelo Congresso, da forma como está, a nova Lei Geral do Licenciamento Ambiental. O presidente Arthur Lira (PP-AL) sinalizou que pretende levar ao plenário da Câmara, nesta semana, a votação do projeto de lei 3.729/2004, que tem seu texto substitutivo apresentado pelo deputado Neri Geller (PP-MT).

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A avaliação dos ex-ministros é que a proposta, que não passou por nenhuma audiência pública para debate, gera “insegurança jurídica e ameaça agravar a crise econômica”, ao anular ritos de licenciamento para uma série de empreendimentos, além de flexibilizar o processo em diversas áreas.

O documento é assinado por Carlos Minc, Edson Duarte, Gustavo Krause, Izabella Teixeira, José Carlos Carvalho, José Goldemberg, José Sarney Filho, Marina Silva e Rubens Ricupero.

Projeto quer dispensar licenças para cultivo de espécies de interesse agrícola, pecuária extensiva e semi-intensiva, além de pecuária intensiva de pequeno porte. Foto: Leonardo Soares/Estadão

“Manifestamos nesta carta nossa forte apreensão e rejeição a vários aspectos do novo texto e à votação precipitada, sem um debate público aberto com a sociedade”, declaram os ex-ministros. “O licenciamento ambiental existe não para impedir as atividades econômicas mas sim, por meio de dados e informações atuais e consistentes sobre a localização e os impactos dos empreendimentos, para orientar e decidir as condições de viabilidade dos empreendimentos com segurança ambiental e adoção das melhores tecnologias disponíveis para minimizar e mitigar os impactos. Portanto, essa função básica precisa ser garantida na nova legislação.”

Os ex-titulares do Ministério do Meio Ambiente afirmam que, ao longo dos últimos 40 anos, após entrada em vigor da Lei de Política Nacional do Meio Ambiente (Lei Federal 6.938 de 1981), há espaço para “uma atualização e unificação responsável da nossa legislação de licenciamento ambiental”, mas que não isso o que está proposto.

A versão atual do texto prestes a ir a plenário, afirmam, “abre uma série de exceções ao licenciamento de inúmeras atividades econômicas e à aplicação de instrumentos fundamentais para o licenciamento de forma a praticamente criar um regime geral de exceção ao licenciamento, com forte ênfase ao auto licenciamento, uma novidade até então sequer debatida com a sociedade”.

Se o texto for à votação sem um amplo e responsável debate com a sociedade, declaram os ex-ministros, pode haver aumento de judicialização do licenciamento ambiental em todas as esferas (federal e estaduais), além de risco para os necessários investimentos, comprometendo o propósito principal, de criar ambiente de negócios favorável.

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“O caráter de urgência não pode ser motivado, como parece ser, pela oportunidade da pandemia e da votação em plenário em regime de deliberação remota, sem um amplo e transparente debate com a sociedade sobre as aqui questionadas inovações oferecidas pelo relatório”, declaram. “Ao contrário do interesse maior do Brasil de promover o desenvolvimento sustentável em convergência com nossas metas de proteção da biodiversidade e de mitigação e adaptação às mudanças climáticas, o projeto de lei em referência praticamente fulmina de morte um dos principais instrumentos que deveria nos guiar para alcançá-las.”

O deputado Neri Geller, que tem apoio do governo de Jair Bolsonaro, disse que preparou um documento técnico, com "zero ideologia". Ao Estadão, afirmou que busca “trazer segurança jurídica para o investidor, para o licenciador para que ele possa ter condições de liberar projetos importantes que não degradam o meio ambiente”. Sua proposta também é defendida pela Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), que detém uma das maiores bancadas do Congresso

Na semana passada, uma análise realizada pelas maiores organizações ambientais que atuam no País apontou que a proposta, como está hoje, acaba com a necessidade de licenciar 13 atividades de impacto ao meio ambiente. A avaliação foi feita pelas organizações Greenpeace Brasil, Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), Instituto Democracia e Sustentabilidade, Instituto Sociedade, População e Natureza, Instituto Socioambiental (ISA), Observatório do Clima, SOS Mata Atlântica e WWF Brasil.

Uma das principais propostas que chamam atenção diz respeito à dispensa expressa de licenças para cultivo de espécies de interesse agrícola, pecuária extensiva e semi-intensiva, além de pecuária intensiva de pequeno porte. Outros 13 tipos de atividades ficam isentas da obrigação de serem licenciadas. São atividades impactantes como, por exemplo, obras de transmissão de energia elétrica com tensão de 69 kV; sistemas e estações de tratamento de água e de esgoto sanitário; obras de manutenção de infraestrutura em instalações preexistentes, como estradas, além de dragagens (retirada de sedimentos) de rios; usinas de triagem de resíduos sólidos; pátios, estruturas e equipamentos para compostagem de resíduos orgânicos; e usinas de reciclagem de resíduos da construção civil.

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Leia a íntegra da carta

“Projeto de Lei Geral do NÃO-Licenciamento Ambiental promove insegurança jurídica e ameaça agravar a crise econômica Brasileira

Tomamos conhecimento do conteúdo do substitutivo ao Projeto de Lei Geral de Licenciamento Ambiental, PL nº 3.729/2004, apresentado em 05.05.2021, pelo deputado Federal Neri Geller. Também tomamos ciência, pela imprensa, da intenção do Presidente da Câmara dos Deputados, Deputado Artur Lira, de pautá-lo para votação ainda nesta semana. Manifestamos nesta Carta nossa forte apreensão e rejeição a vários aspectos do novo texto e à votação precipitada, sem um debate público aberto com a sociedade.

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O licenciamento ambiental existe não para impedir as atividades econômicas, mas sim, por meio de dados e informações atuais e consistentes sobre a localização e os impactos dos empreendimentos, para orientar e decidir as condições de viabilidade dos empreendimentos com segurança ambiental e adoção das melhores tecnologias disponíveis para minimizar e mitigar os impactos. Portanto, essa função básica precisa ser garantida na nova legislação.

Ao longo dos últimos 40 anos, após entrada em vigor da Lei de PolíticaNacional do Meio Ambiente (Lei Federal 6.938 de 1981), é certo que houve muitos avanços em aspectos importantes do desenvolvimento econômico, industrial, social, tecnológico e ambiental que certamente justificam uma atualização e unificação responsável da nossa legislação de licenciamento ambiental. Todavia não é o que o Substitutivo ora apresentado propõe.

Dentre os graves problemas que distorcem e fragilizam um dos principais instrumentos da Política Nacional de Meio Ambiente, o Substitutivo ora comentado abre uma série de exceções ao licenciamento de inúmeras atividades econômicas e à aplicação de instrumentos fundamentais para o licenciamento de forma a praticamente criar um regime geral de exceção ao licenciamento, com forte ênfase ao auto licenciamento, uma novidade até então sequer debatida com a sociedade.

O texto divulgado, conforme os problemas apontados no anexo a esta carta, se for a votação sem um amplo e responsável debate com a sociedade, deve aumentar a insegurança jurídica e a judicialização do licenciamento ambiental em todas as esferas (federal e estaduais), aumentar o risco para os necessários investimentos e, portanto, fulminar com o propósito principal perseguido por este projeto, qual seja, criar ambiente de negócios favorável para superarmos o quanto antes a gravíssima crise econômica que assola o País, em consequência da inepta gestão da pandemia pelo atual governo federal.

Destacamos no anexo desta carta alguns dos graves problemas do relatório emquestão. Tendo contribuído ao longo dos últimos 30 anos para a estruturação do Sistema Nacional do Meio Ambiente, à frente do Ministério do Meio Ambiente, estamos cientes da necessidade de aprimoramento da legislação e concordamos com a importância de uma nova Lei Geral de Licenciamento Ambiental que estabeleça padrão e parâmetros gerais orientadores para o conjunto de legislações federais, estaduais e municipais sobre o tema. Todavia, o texto ora apresentado para votação em caráter de urgência está muito longe de dialogar coerentemente com essa necessidade.

O caráter de urgência não pode ser motivado, como parece ser, pela oportunidade daPandemia e da votação em plenário em regime de deliberação remota, sem um amplo e transparente debate com a sociedade sobre as aqui questionadas inovações oferecidas pelo relatório.

Ao contrário do interesse maior do Brasil de promover o desenvolvimento sustentável em convergência com nossas metas de proteção da biodiversidade e de mitigação e adaptação às mudanças climáticas, o projeto de lei em referência praticamente fulmina de morte um dos principais instrumentos que deveria nos guiar para alcança-las.

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Diante do exposto colocamo-nos a disposição do Congresso Nacional para participarde um debate responsável, racional, coerente e propositivo para a construção de um projeto que de fato atenda aos interesses maiores da Nação e não se transforme apenas num cheque em branco para grupos minoritários dentro de setores que continuam defendendo o atraso e retardando o desenvolvimento sustentável do nosso País.

Brasil, 10 de maio de 2021.

Carlos Minc Edson Duarte Gustavo Krause Izabella Teixeira José Carlos Carvalho José Goldemberg José Sarney Filho Marina Silva Rubens Ricupero

ANEXO Pontos graves que transformam o PL em Lei Geral do Não-Licenciamento / Auto Licenciamento:

• Art. 8º: Propõe uma extensa lista com treze dispensas de licenciamento para atividades impactantes, como por exemplo: obras de serviço público dedistribuição de energia elétrica; sistemas e estações de tratamento de água e de esgoto sanitário, inclusive com dispensa de outorga de direito de uso de recursos hídricos para o lançamento do efluente tratado; serviços e obras direcionados à manutenção e melhoramento da infraestrutura em instalações pré-existentes ou em faixas de domínio e de servidão, com impactos graves na indução de desmatamentos em regiões como a Amazônia; usinas de triagem de resíduos sólidos; pátios, estruturas e equipamentos para compostagem de resíduos orgânicos; usinas de reciclagem de resíduos da construção civil com potencial impacto em regiões urbanas, sobretudo nas periferias afetando comunidades carentes.

• Art. 9º: Também ficam expressamente dispensados de licença: o cultivo de espécies de interesse agrícola, temporárias, semiperenes e perenes; a pecuária extensiva e semi-intensiva; além da pecuária intensiva de pequeno porte. 

• Art. 3º, XXVI, e art. 21: Estabelecem a licença auto declaratória (LAC – Licença por Adesão e Compromisso), figura criada para atender aos empreendimentos de baixo impacto ambiental e pequeno porte, que poderá ser emitida automaticamente sem qualquer análise prévia pelo órgão ambiental, e que passará a ser a regra do licenciamento no país, inclusive de médio impacto e porte. A proposta afirma que todo e qualquer empreendimento não qualificado como de significativo potencial de impacto, ou seja, a maioria absoluta do licenciamento no Brasil (que não passa por EIA/Rima), pode ser licenciado mediante esta modalidade automática e sem controle prévio, podendo abarcar todo tipo de empreendimento impactante, incluindo barragens de rejeitos como as que se romperam em Mariana e Brumadinho (MG);

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• Art. 11: Ainda será aplicada a licença auto declaratória à ampliação de capacidade e à pavimentação em instalações pré-existentes ou em faixas de domínio e de servidão, o que abrange empreendimentos cuja implantação historicamente causa mais de 95% do desmatamento na Amazônia, como a pavimentação ou a ampliação de estradas e a ampliação de hidrelétricas, os quais poderão ser realizados sem a adoção de qualquer medida destinada a conter o impacto do desmatamento e da grilagem de terras no bioma;

• Art. 4º, § 1º, e art. 17, § 1º: Delegação para autoridades e órgãos estaduais e municipais de praticamente todas as definições complementares à lei, resultando na aplicação do licenciamento de forma muito distinta entre estados e municípios, e mesmo decisões caso a caso, o que inviabiliza a segurança jurídica de empreendimentos, a proteção ambiental e a padronização da legislação, além de abrir margem a atos de corrupção e barganha política; 

• Art. 4º, § 1º, e art. 8º, III: Permissão para estados e municípios dispensarem atividades impactantes de licenciamento ambiental, gerando uma corrida pela flexibilização ambiental entre esses entes para atrair investimentos sem respeito à legislação;

• Art. 13, §§ 1º, 2º e 5º: Dispensa de adoção de medidas para conter impactos de empreendimentos sobre o desmatamento, a saúde pública e outros bens resguardados pelo Poder Público;

• Art. 8, VII, e Art. 16: Inúmeras restrições à aplicação da Política Nacional de Recursos Hídricos, mediante a dispensa de outorga de recursos hídricos, podendo um empreendimento ser licenciado sem a necessária garantia de disponibilidade de recursos hídricos, além do descontrole sobre o lançamento de efluentes;

• Art. 16: Dispensa ao empreendedor de garantir conformidade com a legislação municipal pertinente, mediante a exclusão da certidão de uso, parcelamento e ocupação do solo urbano;

• Art. 39, I, ‘a’, e art. 40, I, ‘a’: Exclusão da análise de impacto e da adoção de medidas para prevenir danos sobre todas as Terras Indígenas que ainda não tenham sido efetivamente demarcadas, o que representa cerca de um quarto do total;

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• Art. 39, I, ‘c’, e art. 40, I, ‘c’: Eliminação da análise de impacto e da adoção de medidas para prevenir danos sobre todos os Territórios Quilombolas que ainda não tenham sido titulados, o que representa 87% do total;

• Art. 39, III, e art. 40, III: Exclusão da análise de impactos diretos e indiretos sobre Unidades de Conservação, abrindo caminho para a sua destruição e inviabilizando a proteção ambiental, com impactos nefastos sobre a biodiversidade;

• Eliminação da Responsabilidade Socioambiental das instituições financeiras rebaixando seu papel à mera consulta sobre vigência de licenças; 

• Permissão para renovação automática da licença ambiental por mera autodeclaração de conformidade do empreender, sem qualquer verificação sobre o cumprimento das condicionantes ambientais.”

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