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Jiboia-do-ribeira: o mito da Mata Atlântica ressurge

Reportagem do 'Estado' acompanhou com exclusividade a descoberta e o retorno à natureza de uma das serpentes mais raras do mundo: a Corallus cropanii

Por Herton Escobar (Texto) e Tiago Queiroz (Fotos)
Atualização:
Momento da soltura da cobra Corallus cropanii, já com o sistema de transmissão instalado, de extrema importância para o rastreamento de seu comportamento na selva Foto: Tiago Queiroz/Estadão

O facho de luz da lanterna rasga a escuridão da noite, conectando os olhos do cientista aos da serpente. Embrulhado como uma lagarta dentro de sua rede camuflada, o biólogo Bruno Rocha está atento a cada movimento da cobra, que ele mesmo soltara na floresta algumas horas atrás. Ele liga a lanterna apenas alguns segundos por vez, para não perturbar demais o animal. Entorpecida pelo frio, a cobra parece ter encontrado o seu próprio esconderijo camuflado para passar a noite, enrolada ao topo de um xaxim.

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É um momento tenso e emocionante. Bruno sente como se todos os herpetólogos do mundo estivessem espiando sobre seus ombros - um tanto pesados ultimamente, com a responsabilidade de conduzir um projeto tão especial. Afinal, a cobra que está na outra ponta daquele túnel de luz não é uma serpente qualquer: É uma Corallus cropanii. Ninguém nunca viu um bicho desses na natureza. Bruno é o primeiro; e espera-se que não seja o último.

Considerada a jiboia mais rara do mundo, a Corallus cropanii é quase que um mito da Mata Atlântica. A espécie foi descoberta por acaso, em 1953, quando um morador de Miracatu, no Vale do Ribeira, chegou ao Instituto Butantã, em São Paulo, carregando uma cobra estranha, de ventre amarelo e com uma série de “furinhos” na lateral da boca. De longe, poderia até ser confundida com uma jararacuçu, uma víbora peçonhenta e de temperamento agressivo, muito comum na região; mas seu comportamento era o oposto disso - devagar e tranquilo, típico das jiboias. 

O bicho foi parar nas mãos do chefe da Herpetologia do Butantã, o renomado Alphonse Hoge, que tratou de descrevê-la como nova espécie e batizá-la Corallus cropanii, numa homenagem ao vulcanólogo italiano Ottorino Cropani, pioneiro das cadeiras de geologia e paleontologia na Universidade de São Paulo (USP). 

Desde então, muitas expedições científicas foram a campo nas florestas do Vale do Ribeira, com o intuito de encontrar outras “jiboias de Cropan”. Sem sucesso. “Muita gente procurou por essa cobra durante muito tempo, mas ela nunca apareceu. Era um grande mistério”, conta o herpetólogo Hussam Zaher, orientador de Bruno no Museu de Zoologia da USP. 

Outras cinco cobras foram encontradas ao longo do anos, só que nenhuma delas viva. Todas chegaram às mãos dos pesquisadores já sem vida - algumas até em pedaços -, depois de mortas por moradores da região. Duas vieram de trem, em carregamentos de serpentes que eram enviados regularmente ao Butantã. Uma tinha só a cabeça e o couro preservados em um vidro com álcool. Uma precisou ser desenterrada; e de outra, só sobreviveu a foto. 

No Vale do Ribeira, matar cobra é praxe. Não por maldade, mas por medo, e desconhecimento. A região é a mais rica em florestas e a mais pobre, economicamente falando, do Estado de São Paulo. Consequentemente, as cobras são muitas, e os serviços de saúde são poucos. Por isso, ninguém gosta de correr riscos. 

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“Aqui não tem socorro, rapaz. Se tivesse era fácil, mas não tem. Então a gente tem medo”, diz a senhora Nadir Rosa Teixeira, moradora há 50 anos do Guapiruvu, um bairro distante do município de Sete Barras, onde os últimos três exemplares de Corallus cropanii foram encontrados. Na dúvida, vale a regra de que cobra boa, é cobra morta.

Ou pelo menos era assim, até recentemente. A cobra que está na mira da lanterna de Bruno agora só não foi morta graças a um trabalho de educação ambiental que ele e outros biólogos ligados ao Museu de Zoologia da USP e ao Instituto Butantã realizam na região desde 2014, ensinando os moradores a reconhecer espécies e lidar com os diferentes tipos de cobras que encontram pelo caminho - entre elas, quem sabe, uma Corallus cropanii.

Em outubro de 2016, Bruno deu algumas aulas sobre cobras no Guapiruvu, e aproveitou para distribuir folhetos e colar cartazes com informações sobre aquela tal serpente misteriosa - que ele rebatizou, popularmente, de jiboia-do-ribeira, em homenagem ao vale e aos seus moradores, tanto répteis quanto humanos. O material estampava fotos da Corallus cropanii e pedia que as pessoas ligassem para ele, caso encontrassem uma cobra dessas por aí. 

O resultado chegou muito antes do que ele esperava. 

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Descoberta

Era um sábado, 21 de janeiro, quando o telefone tocou. Por sorte, o celular de Bruno tinha créditos naquele dia, o que não é comum. Do outro lado da linha estava Paulo Vinicius Teixeira, de 24 anos, morador do Guapiruvu. Ele e mais quatro amigos haviam topado com uma cobra muito parecida com a do cartaz numa estrada de terra do bairro, cruzando de uma área de mato aberto para uma floresta. “Tem os furinhos na boca?”, perguntou o biólogo. Sim. “Beleza, então dá um tempo que eu tô indo aí.”

Bruno só não pulou imediatamente no carro porque não tem carro. Teve de pedir emprestado o Corsa 2012 da amiga, Daniela Gennari, mestranda do Instituto de Biociências da USP e colaboradora dele no projeto. Aos 33 anos, Bruno — ou Zé, como é chamado pelos amigos — é um sujeito concentrado e discreto, ainda em início de carreira. Descendente de índios e escravos, tem os cabelos longos, negros, e olhos verdes que lhe dão um aparência um tanto reptiliana. Cursou biologia em uma faculdade pequena do interior e sobrevive com uma bolsa técnica de R$ 1.100.

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A viagem até o Guapiruvu levou cinco horas. Bruno chegou na comunidade à meia-noite, acompanhado da bióloga Lívia Correa, técnica do Laboratório Especial de Coleções Zoológicas do Instituto Butantã. Só conseguiram ver a cobra pela manhã.

O bicho estava sob a guarda de André Bezerra, amigo do Vinicius, que estava com ele quando acharam a jiboia. Por muito pouco ela não foi morta. O primeiro do grupo a avistá-la logo correu para pegar um pedaço de madeira e assassiná-la a pauladas, achando se tratar de uma jararacuçu “Sai, sai, sai”, gritava ele, alertando os amigos. Por sorte, o porrete estava podre e quebrou-se no ar antes de atingir a cobra, dando a André e Vinícius a chance de se aproximar e perceber que havia um quê de jiboia naquela jararacuçu. Pegaram a serpente, botaram num saco, e chamaram o biólogo. 

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Quando Bruno e Livia chegaram, no dia seguinte, André estava ressabiado. Só aceitou mostrar a cobra depois de os pesquisadores garantirem que ela permaneceria no Guapiruvu. “Ele estava preocupado que a gente ia levar o bicho embora e não voltar nunca mais. Eu expliquei que não, que a ideia era estudar a cobra na natureza, e que o lugar dela era ali, no Guapiruvu”, relata Bruno.

“A hora que ele falou ‘vou pegar’, já comecei a tremer”, relembra o biólogo. “Aí ele veio, e mostrou, e era. Eu lembro de olhar para o rosto da Livia e não conseguir falar nada. É ele, é ele; é o bicho.” O mito Corallus cropanii, em carne e osso — e o mais importante de tudo: vivo!

Preparação

Os meses seguintes foram dedicados a planejar os procedimentos de soltura e monitoramento da cobra. Tão logo os pesquisadores pegaram o bicho, já queriam colocá-lo de volta na floresta. Afinal de contas, de nada adiantava ter uma cobra viva em cativeiro, sem poder aprender nada sobre ela.

A anatomia básica da espécie já é conhecida desde 1953, mas praticamente nada se sabe sobre a sua biologia — ou seja, sobre o seu comportamento na natureza. Será que ela vive no chão ou nas árvores? O que ela come? Como captura suas presas? Como encontra seus parceiros, e com que frequência ela se acasala? As perguntas são muitas, e a única forma de respondê-las é espionando a cobra dentro da mata.

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Todas as Corallus cropanii encontradas até agora tinham entre 1 metro e 1,5 metro de comprimento. Esse novo exemplar (uma fêmea) é um pouco maior, com 1,7 metro, e cerca de 1,5 quilo. Não tem veneno e é extremamente mansa, permitindo aos cientistas manuseá-la com facilidade. Assim como outras cobras do gênero Corallus e as jiboias em geral (cientificamente chamadas de boídeos), ela mata suas presas por constrição, enrolando-se nelas e espremendo seus corpos, até asfixiá-las — algo que os pesquisadores já constataram em cativeiro, ao alimentá-la com camundongos.

Agora, imagine seguir uma cobra dessas, solta na natureza, 24 horas por dia. Por mais lenta que ela seja, não é nenhum passeio no parque. Para ajudá-los nessa tarefa, os pesquisadores grudaram ao corpo da cobra dois transmissores de rádio; um do tamanho de uma pilha AA e outro, de uma moeda de R$ 1. Cada um funciona numa frequência diferente, permitindo aos cientistas localizá-la de diferentes ângulos e distâncias, tanto na horizontal quanto na vertical.

O plano da dupla Bruno e Daniela é monitorar a cobra ininterruptamente por pelo menos um mês — até onde o dinheiro e as forças deles permitirem, trabalhando diariamente no meio do mato. 

O ideal, mais simples e mais eficiente, seria usar um rastreador de GPS, implantado debaixo da pele da cobra, mas o equipamento custa R$ 10 mil, e a equipe mal tem dinheiro para pagar a gasolina do carro. Tudo aconteceu tão rápido, que não houve tempo de submeter um projeto e obter financiamento específico para o trabalho. Fora um pequeno financiamento inicial da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) para achar a cobra, os pesquisadores se mantêm no campo hoje com recursos do próprio bolso, algum dinheiro emprestado de outros projetos, e o apoio da comunidade. A comida para o trabalho de campo foi doada por um fazendeiro da região.

Muitas crianças da comunidade rural do Guapiruvu, na cidade de Sete Barras, acompanharam a soltura da cobra Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Soltura

Com o acampamento montado e os equipamentos em mãos, a soltura da cobra foi marcada para 5 de agosto. O local escolhido foi justamente o corredor de mata para onde ela estava rastejando quando foi interceptada, entre uma plantação de banana e outra de palmito pupunha, que são a base da economia local. No fundo da paisagem pode-se ver as montanhas cobertas de mata do Parque Estadual Intervales, que faz divisa com o bairro.

Bruno passou a manhã escolhendo o ponto exato de soltura. Precisava ser um local seguro para a cobra e acessível para as pessoas que viriam assistir ao evento. Toda a comunidade do Guapiruvu foi convidada.

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Por volta das 13 horas, começa a romaria. Várias famílias chegam de carona numa carroceria, puxada por um trator. Outras chegam de carro e moto. No total, umas 40 pessoas. O gestor do parque estadual, Thiago Conforti, está presente para prestigiar o momento e estreitar laços com a comunidade. A confraternização é regada a suco de juçara, torta de palmito (pupunha) e chips de banana.

Todos estão ansiosos para ver a jiboia. “Quero dar um beijo nela”, diz uma garotinha, que apelidou a cobra de Dona Crô. Quando o animal finalmente sai da caixa, é celular filmando e fotografando para todo lado. Parece tapete vermelho do Oscar. O bicho, que normalmente seria morto a pauladas, virou mascote da comunidade.

Bruno carrega a serpente enrolada num tronco e coloca o animal aos pés de uma árvore. Ela fica ali por cerca de uma hora, quase imóvel, prospectando o ambiente com suas fossetas labiais — os tais “furinhos na boca”, que na verdade são órgãos sensoriais supersensíveis. Além da luz visível, que todos os animais geralmente enxergam com os olhos, as jiboias também captam radiação infravermelha (calor) com essas fossetas, o que lhes permite enxergar o mundo num gradiente de temperatura, como o alienígena caçador do filme O Predador.

Só depois que a multidão se dispersou, ela deixou o tronco e saiu a se esgueirar pela mata. “Para a biologia esse é um momento histórico”, vibra o pesquisador Francisco Franco, do Instituto Butantã, que acompanhou o processo de soltura. Foi ele quem fez o primeiro registro científico de uma Corallus cropanii no Guapiruvu, em 2009, baseado apenas na fotografia de uma serpente que havia sido morta recentemente pelos locais. Apaixonado por cobras desde criancinha, ele achava pouco provável que um dia veria um bicho daqueles vivo na sua frente.

“Sempre pensei que as chances eram mínimas. Mas sabia que, se fosse possível, seria numa situação dessas, com um projeto direcionado para ela, e com o envolvimento da população”, diz ele, aos 52 anos. “É como você ver um dinossauro. Me sinto muito honrado de estar aqui.”

“Essa serpente para nós é fundamental. Fundamental para as pessoas entenderem, cara, que a biodiversidade é importante”, diz o agricultor e líder comunitário do Guapiruvu, Gilberto Ohta, que trouxe a família toda para ver a cobra voltar à floresta. “Com toda essa valorização do público externo, das pessoas de fora da comunidade, a comunidade está começando a entender.”

O biólogo Bruno Rocha no momento da soltura, apoia a cobra em um tronco próximo ao solo. A expectativa, que acabou se confirmando dias depois, era de o animal ser arborícola, ou seja, que passa boa parte de sua vida em cima das árvores Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Monitoramento

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Os resultados não demoraram a aparecer. Tão logo se viu livre na natureza, a jiboia começou a procurar uma árvore para escalar, confirmando as suspeitas de que ela é um bicho predominantemente arborícola — ou seja, que passa a maior parte da sua vida nas árvores.

Duas horas depois, a escuridão chegou, o frio apertou, e Dona Crô acabou se enrolando no topo de uma samambaia-açu para passar a noite, a cerca de 3 metros do chão e uns 15 metros de onde Bruno amarrou sua rede camuflada, para ficar de olho nela. Assim permaneceram os dois, observada e observador, até o calor do sol voltar a injetar ânimo nas suas veias.

Com o raiar do dia, a cobra fica ativa de novo. Ela estica o pescoço até passar para uma árvore vizinha; um cedro de uns 20 metros de altura. Sua cauda é preênsil, o que lhe permite serpentear pelos galhos e ramos da floresta com exímia destreza. Ela segue por um galho grosso do cedro, coberto de musgos e bromélias, que se projeta sobre um riacho de águas transparentes. Chega até a ponta, estica o pescoço no vazio, mas não encontra nada. É uma rua sem saída. Melhor voltar.

Os transmissores de rádio parecem não interferir na locomoção do bicho. O “bip-bip” do sinal se intensifica quando a antena é apontada na direção certa. É como se fosse o pulso de vida da cobra. “É o som que acalma nosso coração”, brinca Daniela. 

Logo de cara, fica claro para nós como é difícil enxergar a cobra no meio da folhagem. Seu padrão de escamas proporciona ótima camuflagem, e ela se move sempre muito lentamente, sem chamar a atenção. Só o amarelo do papo é que se destaca um pouco. Se não soubéssemos que ela estava ali, poderíamos facilmente passar uma semana bebendo água daquele riacho, e acampados a poucos metros de distância, sem notar sua presença.

Essa pode ser uma das razões para o seu status de “mito”. Hussam Zaher, do Museu de Zoologia, acredita que a raridade da espécie se deve a uma combinação de fatores: baixa densidade populacional, distribuição geográfica restrita, e os hábitos arborícolas, que tornam difícil sua detecção.

As duas Corallus cropanii registradas anteriormente no Guapiruvu foram encontradas no chão, então é fato que elas descem ao solo em algum momento; mas com que frequência e por qual motivo, ninguém sabe. Cabe a Bruno e Daniela descobrirem agora, com o apoio de André e Vinicius — que, depois de descobrirem a cobra, viraram seus ajudantes de campo. “Estou inventando uma profissão para eles: protetor de cropanii”, brinca o biólogo.

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Depois de subir no cedro, a jiboia não parou mais. Em 15 dias, passou por quase 15 árvores diferentes e até cruzou para o outro lado do rio, usando uma ponte de galhos. Em linha reta, na semana passada, já estava a quase meio quilômetro do ponto de soltura.

Os biólogos acompanham à distância, observando e anotando tudo — o comportamento da cobra, o tipo de árvore, os horários, a temperatura, a umidade do ar, a incidência solar. “Tudo sobre os hábitos de vida dela é interessante; tudo é novidade”, deslumbra-se Bruno. A cereja no bolo seria encontrar uma outra Corallus cropanii no meio do caminho. “Talvez ela seja rara para a ciência, mas não para a natureza”, pondera.

Os dados gerados pela pesquisa serão essenciais para elaborar uma estratégia de conservação da espécie. “Se a gente pretende conservar alguma coisa, a gente tem de conhecer aquilo que a gente quer preservar”, diz Francisco Franco. “Nós não vamos ter argumentos para convencer o governo, a sociedade, e mesmo a comunidade, que esse bicho precisa ser protegido, se a gente não tiver conhecimento a respeito dele.”

O monitoramento prossegue, sem data para acabar.

Munido de um potente binóculo, Bruno Rocha instala uma rede camuflada em meio à mata para rastrear a cobra. Quanto mais longe os pesquisadores ficarem do animal, melhor, pois mais naturalmente ele vai agir na floresta Foto: Tiago Queiroz/Estadão

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