Do algodão orgânico à costureira, rede cria cadeia sustentável

Em entrevista, costureira Nelsa Nespolo fala sobre iniciativa que conectou cooperativas do plantio à venda de roupas, com distribuição de renda

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Por Túlio Kruse
Atualização:

Quando ajudou a fundar uma cooperativa na zona norte de Porto Alegre, em 1996, Nelsa Nespolo pensava principalmente nas condições de trabalho e renda de costureiras: unidas, elas teriam mais facilidade na entrega de grandes encomendas e, com um orçamento comum, poderiam alugar o próprio galpão em vez de trabalharem em casa. Da periferia da capital gaúcha, o trabalho tomou proporções nacionais. Hoje, as costureiras são parte de uma rede com seis organizações que formam uma cadeia produtiva completa, do plantio de algodão ao acabamento das roupas e acessórios, presente em todas as regiões do Brasil.

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O trabalho começa em plantações de algodão ecológico, que não usa adubos químicos nem agrotóxicos, cultivadas por mais de 250 famílias em fazendas no Ceará e no Mato Grosso do Sul. O algodão é então enviado a uma cooperativa em Minas Gerais para fiação e tecelagem. Por fim, os fios e tecidos vão para galpões no Rio Grande do Sul, onde é feita a costura e o acabamento. Em Rondônia, sementes locais são transformadas em botões e acessórios, e também remetidos ao Sul. Tudo isso faz parte da rede Justa Trama, que tem cerca de 600 trabalhadores associados em todo o País. A rede produz, em média, cerca de 2 mil peças por mês, e também vende o tecido produzido em Minas para marcas interessadas em fabricar suas próprias peças com o produto.

O lucro das vendas é redistribuído aos trabalhadores em todos os pontos da cadeia, a partir de um valor combinado entre as cooperativas". Segundo um estudo da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), publicado em setembro, a Justa Trama "foi capaz de gerar resultados brilhantes nesse sentido, com valorização do trabalho, resgate da autoestima, qualificação profissional e melhoras na qualidade de vida de agricultores familiares e trabalhadores".

Nelsa Nespolo costura tecidos na sede da Cooperativa de Costureiras Unidas Venceremos (Univens), em Porto Alegre Foto: Divulgação

Uma das principais lideranças da rede de cooperativas, Nelsa explicou ao Estado como a iniciativa surgiu e os desafios para mantê-la ativa.

Qual é a diferença da Justa Trama em relação a cadeias produtivas convencionais?

Não usamos nada de veneno no processo de plantio, e isso já é algo que você se sente fazendo a diferença para o mundo, para as pessoas que estão usando a roupa. Não é uma visão só comercial, mas de estar fazendo a coisa correta no sentido do cuidado com o meio ambiente.

Além disso, com o (algodão) orgânico conseguimos agregar mais valor, então os agricultores e as costureiras ganham mais, assim como as pessoas envolvidas no processo de fiação. Os valores são combinados entre nós. A gente define qual é o valor que deve ser ajustado em cada etapa da produção.

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Isso é algo que não existe numa cadeia produtiva convencional. Quem domina umaárea mais estratégica acaba definindo o seu valor e os outros ficam com o resto. Quando se compra algodão convencional, a margem que fica para as costureiras é muito pequena. Você não consegue melhorar a vida das pessoas.

Sem contar que a gente não coloca nada no lixo. Os retalhos sempre são aproveitados por outros, seja na produção de brinquedos, jogos, bonecas, ou então alguém cria algumas coisa com eles.

Como surgiu a ideia de montar a cadeia?

Havia duas coisas que nos incomodavam, e nos incomodam até hoje. Uma delas é a questão de poder fazer um produto que fosse mais sustentável. Outra coisa que nos inquietava muito era como fazer com que, num trabalho associado, pudéssemos também ter uma distribuição de renda mais justa em todo o processo.

No Fórum Social Mundial de 2005, que aconteceu aqui em Porto Alegre, tentamos colocar isso em prática. Produzimos 60 mil sacolas para o Fórum,envolvendo 45 grupos, cooperativas, associações desdeSão Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul. Foi uma experiência em que vimos que, de fato, era possível produzir de forma coletiva e combinar valores justos.

A partir do Fórum, resolvemos tocar essa cadeia, mas queríamos expandir ela ainda mais. Aí fomos buscar agricultores que plantam o algodão sem agrotóxicos.

Por que a questão ambiental era importante para vocês?

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Nos incomoda muito como o algodão não orgânico contamina muito o meio ambiente. Um algodão convencional tem em torno de 26 aplicações de agrotóxicos para poder resistir ao bicudo, uma praga. Ele é responsável por 25% de todo o agrotóxico do mundo. E o algodão é o que mais acompanha o nosso corpo, é nos lençóis em que a gente deita, é nas roupas mais íntimas que a gente usa, nas roupas que têm contato direto com o corpo. A gente carrega esse veneno todo, além de envenenar a água e a terra.

Qual o principal desafio de levar a cabo uma iniciativa como essa? 

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Uma cadeia produtiva é cheia de desafios, em primeiro lugar porque não somos preparado para isso. Geralmente, entendemos bem de uma parte da produção. E aí, de repente você reúne todos os elos, onde cada um domina uma parte, mas agora você precisa pensar o todo. Isso é um desafio grande e positivo.

Além disso, ter uma cadeia que envolve todas as regiões do Brasil cria um desafio na gestão e na articulação. Por outro lado, todos os desafios constroem valores. Isso construiu um valor de confiança, entre nós, muito grande.

E nós também temos um desafio que é o mercado consumidor. A gente precisa fazer campanhas para que as pessoas entendam todo esse processo e mudem seu comportamento. Nesse sentido, temos depoimentos maravilhosos, de pessoas que passaram a consumir produtos orgânicos e hoje não voltam para o convencional, e fazem um esforço para ter coerência.

Qual é o futuro da Justa Trama? Como a iniciativa pode evoluir?

Se tu perguntasses isso há uns 15 anos, antes de a gente concretizar a Justa Trama, diríamos que o nosso objetivo era produzir bastante, vender bastante.

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Agora, a gente olha para frente e vê que, quanto mais produzirmos, teremos mais agricultores saudáveis plantando algodão orgânico. Quanto mais vendermos, mais gente teremos com uma roupa que é fruto de uma preocupação sustentável.

A gente quer sim crescer bastante, que todas as pessoas do Brasil tenham acesso a um produto saudável, queremos ter pontos de venda nos mais diversos Estados. E há justiça social nesse processo, há distribuição de renda.

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