01 de setembro de 2019 | 03h00
AMAZONAS - No meio da floresta amazônica, muito longe das nuvens de fumaça das queimadas que cobriram a região Sudeste do País, o pequeno Mauro Neto, de oito anos, entra às pressas em casa, corre até o quarto, pega um cartaz e volta para a varanda, onde a reportagem conversava com seus pais.
O menino, que vive em Realidade, uma vila de madeireiros de 3 mil habitantes erguida nos arredores de Humaitá (AM), na BR-319, abre orgulhoso o cartaz que ganhou na escola. No papel, a marca de uma mão e uma de um animal, com a frase: “Um por todos e todos contra as queimadas”.
A lição que o pequeno Mauro já aprendeu na escola ainda se propaga de forma lenta pela Amazônia. São poucos, como o menino de Realidade, que conseguem enxergar os prejuízos da derrubada da floresta.
Durante dez dias, o Estado viajou pela região sul do Amazonas, a partir da Transamazônica e da BR-319, que liga Porto Velho a Manaus. No rastro das queimadas, foram muitos os relatos de ribeirinhos, comerciantes, pequenos produtores, indígenas, madeireiros, fazendeiros e brigadistas, de que o fogo faz parte da rotina da floresta no período das secas. A diferença, desta vez, é o volume dos incêndios.
No rosto do povo da Amazônia, foi possível observar a apreensão daqueles que foram avisados, às pressas, de que deveriam retirar logo os animais de seus sítios, porque outro proprietário iria colocar fogo no mato. Fogo este que avança por unidades de conservação, apesar do trabalho de brigadistas para tentar aplacar os incêndios.
As lições dadas ao pequeno Mauro Neto, ainda que lentamente, se propagam. Se por um lado madeireiros relatam as dificuldades de operar regularmente por causa da corrupção no setor, por outro há quem tente, com pequenas iniciativas, alterar a lógica do desmatamento.
É o caso de Gilson Caetano, um professor de Santo Antônio do Matupi, que mantém uma horta na escola pública, para ensinar alunos a plantarem e a cuidarem da floresta desde cedo. Essa mesma lição é ensinada na terra indígena Tenharin, onde são cultivadas mudas de mogno, jatobá e ipê, o “ouro da floresta”.
Motivados pela mesma empolgação do menino Mauro Neto, os projetos têm como objetivo espalhar a ideia de que é possível eliminar as fumaças de queimadas que assombraram o País.
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01 de setembro de 2019 | 03h00
SÃO PAULO - “Não consigo olhar fotos que mostram incêndios na Amazônia”, conta, voz embargada, o escritor e colunista do Estado Milton Hatoum. Nascido em Manaus, em 1952, ele lá viveu até a adolescência, quando iniciou sua trilha pelo mundo. Desde 1999, mora em São Paulo, mas suas raízes continuam fincadas na capital do Amazonas, cujas lendas e problemas inspiram sua escrita.
“Meus romances falam de uma Manaus que não existe mais. O urbanismo em harmonia com a floresta acabou nos anos 1980. A cidade que está lá hoje é uma das mais desiguais do Brasil”, disse ele, em entrevista em 2013. “Desde a década de 1970, venho apontando para os problemas da devastação daquela área”, diz Hatoum agora, lembrando que, em 1977, publicou um livro de poemas, Amazonas, ilustrado com fotos de Isabel Gouvêa, João Luiz Musa e Sônia da Silva Lorenz.
Ali, seus versos lamentavam a destituição da herança cultural (crenças, rituais de trabalho, aspirações) da população, como também acontece no poema O Fim que Se Aproxima, que o Estado publica aqui em primeira mão (no vídeo abaixo, o escritor faz a leitura do poema).
O Fim que Se Aproxima
Milton Hatoum
Amazonas: mito grego
menos antigo que os mitos da Amazônia.
Os que vivem no Cosmo há milênios
são perseguidos por mãos de ganância,
olhos ávidos: minério, fogo, serragem, fim.
Quem são vocês,
incendiários desde sempre,
ferozes construtores de ruínas?
Os que queimam, impunes, a morada ancestral,
projetam no céu mapas sombrios:
manchas da floresta calcinada,
cicatrizes de rios que não renascem.
Qual Brasil se esconde
atrás da humanidade amazônica?
Que triste pátria delida,
mais armada que amada:
traidora de riquezas e verdades.
Quando tudo for deserto,
o mundo ouvirá rugidos de fantasmas.
E todos vão escutar, numa agonia seca,
o eco:
Não existirão mundos, novos ou velhos,
nem passado ou futuro.
No solo de cinzas:
o tempo-espaço vazio.
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