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Desafio para religiosos: o 'não contato' com grupos indígenas isolados

Missionários querem cativar almas na Amazônia; o presidente do Brasil está do lado deles

Por The Economist
Atualização:

Marcos Mayoruna encontrou Jesus há 15 anos. Filho de um cacique do Vale do Javari, um território indígena da Amazônia brasileira maior que a Áustria, ele foi convertido por um missionário de outro grupo étnico e se tornou pastor. Depois de um seminário no Rio de Janeiro, voltou para casa e espalhou a palavra de Deus para os Mayoruna e outros povos indígenas. Às vezes, ele trabalhava com missionários brasileiros e americanos, trocando seu conhecimento local por doações para seu humilde seminário em Atalaia do Norte, uma cidade situada na parte norte do vale. Mas, diz ele, os missionários pareciam mais interessados em ter contato com povos isolados, grupos indígenas que, diferentemente dos Mayoruna, têm pouco ou nenhum contato com as sociedades que os cercam. No mundo todo, provavelmente existem 100 deles hoje, diz a Survival International, uma ONG. A maior concentração, talvez 16, está no Vale do Javari.

Missionários negam que estejam tentando entrar em contato com povos isolados Foto: DIDA SAMPAIO/ESTADAO

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  Eles devem sua sobrevivência a uma decisão do governo brasileiro de 1988, que desencoraja o contato com tribos isoladas, a não ser para prevenir emergências médicas, guerras entre povos ou outras catástrofes. O pai da decisão política [de não contato] é Sydney Possuelo, um reverenciado sertanista, ou explorador da Amazônia, que liderou missões de contato para o governo militar do Brasil nas décadas de 1970 e 1980. Projetos de desenvolvimento como a construção da rodovia Transamazônica cortada pela floresta habitada por dezenas de grupos indígenas. Em alguns deles, 50-90% dos indígenas morreram de doenças como sarampo e gripe. Horrorizado, Possuelo convenceu o governo a adotar a política de não contato. O que se tornou um modelo para outros países da região.   Desde o início, a medida encontrou resistência, principalmente de pessoas que querem cultivar e extrair minério em terras indígenas. Agora, pela primeira vez, o Brasil tem um presidente, Jair Bolsonaro, que é um crítico da política. Como cristão evangélico, ele compartilha o zelo proselitista dos missionários que Mayoruna encontrou. Ele também é solidário aos empresários que desejam desenvolver [projetos] na Amazônia. Embora ainda esteja nos registros, na prática, a política de não contato está sendo desmantelada.   Um dos primeiros decretos de Bolsonaro transferiu o poder de demarcar reservas indígenas da Fundação Nacional do Índio (Funai) para o Ministério da Agricultura, que é mais amigável aos agricultores. O Supremo Tribunal Federal (STF) anulou a medida. Este ano, Bolsonaro nomeou Ricardo Lopes Dias, ex-missionário, para supervisionar o setor da Funai que lida com sua política em relação aos povos isolados. Possuelo diz que Bolsonaro representa a maior ameaça para esses grupos desde o início da política de não contato. "O contato é um caminho sem volta", diz ele. O alarme é intensificado pela covid-19, que poderia prejudicar os povos indígenas mais do que aqueles com acesso aos cuidados de saúde modernos. Bolsonaro, que revelou nesta semana que seu exame para o novo coronavírus havia dado positivo, mostrou pouco interesse em proteger os brasileiros do vírus.   Mesmo antes de seu mandato, a política de não contato estava ameaçada. Entre 1987 e 2013, a Funai contatou apenas cinco grupos isolados. Mas a extração ilegal de madeira, a mineração e o tráfico de drogas empurraram grupos não isolados para [áreas de] grupos isolados. As tensões entre eles têm se estabelecido no estado. Desde 2014, a Funai liderou tantas missões de contato quanto nos 26 anos anteriores. Em 2015, recebeu críticas por ignorar inicialmente os pedidos dos Matis no Vale do Javari para fazer contato com os isolados Korubo, cujos integrantes haviam matado dois líderes dos Matis. A Funai contatou os Korubo somente depois que os Matis mataram oito Korubo por vingança.   Com Bolsonaro no comando, as pressões religiosas reforçam as comerciais. "Eu não conheci um indígena que queira estar nu, e é um crime mantê-los assim", diz um missionário americano que mora em Atalaia do Norte. Edward Luz, presidente da Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), cujos 480 missionários evangelizam "grupos étnicos não alcançados", escreveu em um e-mail à The Economist dizendo que o contato vai melhorar a saúde dos povos. O medo e a preocupação “serão substituídos pela confiança e eles sorrirão, procriarão, terão suas práticas culturais e crescerão novamente em número”, profetizou.   Lopes já foi um missionário da MNTB. Sua nomeação para a Funai é como "colocar uma raposa no comando do galinheiro", diz Beto Marubo, ativista indígena. Ele teme que Lopes compartilhe informações secretas em relação à localização dos povos indígenas com amigos do proselitismo. Se for necessário contato, isso deve ser feito pelo governo, não por missionários, disse Lopes em um e-mail.   Os missionários negam que eles estejam tentando entrar em contato com povos isolados. Suas ações sugerem o contrário. O Ethnos360, parceiro americano da MNTB, levantou mais de US$ 2 milhões para comprar um helicóptero para "abrir a porta para alcançar mais dez grupos de pessoas vivendo em extremo isolamento" no vale do Javari. Luz diz que o helicóptero, que chegou em janeiro, ajudará a MNTB em áreas onde ela já tua, como a aldeia Vida Nova, uma comunidade do povo Marubo onde foi construída uma igreja na década de 1950. A Funai denunciou Andrew Tonkin, um americano, à polícia por pilotar um hidroavião no Vale do Javari. Líderes indígenas dizem que ele estava procurando por grupos isolados. Ele nega isso e denuncia o que vê como paternalismo da Funai. "E o direito [dos povos indígenas] de convidar quem eles quiserem para sua comunidade?" ele disse em um e-mail. " Para adorar a Deus livremente?"   Não são apenas missionários e mineiros que desafiam a política de não contato. Em um editorial da Science em 2015, dois antropólogos, Kim Hill e Robert Walker, sugeriram que, dada a incapacidade dos governos de proteger terras indígenas, grupos isolados "não são viáveis a longo prazo". "Contato controlado" seria uma política melhor, eles escreveram. "Se pudermos garantir a eles proteção contra a exploração, todos escolherão o contato amanhã", diz Hill. Sua pesquisa mostra que em pelo menos uma medida eles estariam melhor: entre os indígenas da etnia Aché no Paraguai, metade das crianças que vivem isoladas na floresta morria antes de atingir a idade adulta. Após o contato na década de 1970, as taxas de mortalidade infantil aumentaram por alguns anos, mas agora são entre 2% e 3%.   O artigo da Science causou furor. A ideia de contato controlado ignora o direito à autodeterminação dos povos nativos, dizem defensores de nenhum contato. Muitos grupos voltaram ao isolamento após encontros traumáticos, como a escravização por seringueiros no início dos anos 1900. Grupos sem contato "sabem que existe um mundo lá fora", diz Marubo. "Eles estão fazendo uma escolha se isolando." Muitas pessoas duvidam que qualquer contato possa ser controlado. "Você pode confiar que um governo não vá pensar sobre o ouro, óleo e árvores que podem existir por lá?" pergunta Glenn Shepard, um etnobotânico.

Mesmo que o contato controlado fosse possível, agora parece um momento ruim para iniciá-lo. A prevalência de covid-19 entre os povos indígenas nas cidades é cinco vezes maior que entre os brasileiros brancos. Hill concorda que o contato não deva acontecer até que haja uma vacina e Bolsonaro não seja mais presidente. No entanto, os evangelizadores veem a doença como uma razão para iniciá-lo. O lobby evangélico do Congresso aderiu a uma lei que aloca dinheiro para proteger os povos indígenas da covid-19, uma emenda que permite que os missionários permaneçam em terras indígenas. Depois que um tribunal ordenou que o governo expulsasse 20 mil garimpeiros do remoto território Yanomami, o exército distribuiu máscaras faciais e hidroxicloroquina, um medicamento contra malária que Bolsonaro considera eficaz contra a covid-19. Mayoruna, que deixou a floresta porque “queria saber quem era Deus”, recentemente rompeu os laços com os missionários. Ele acha que é uma questão de tempo até que os demais grupos isolados sejam confrontados com o Brasil moderno, mas diz que é errado os pastores acelerarem esse processo. "Você não pode forçar ninguém a se converter", diz ele. / TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

©️ 2020 The Economist Newspaper Limited. Direitos reservados. Publicado sob licença. O texto original em inglês está em www.economist.com

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