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Comunidades tradicionais se mobilizam e obtêm vitória na Amazônia

Associações de agroextrativistas do Rio Manicoré ganham direito de usar área e lutam para demarcar reserva de desenvolvimento sustentável no sul do Amazonas

Por Eduardo Geraque
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Em plena pandemia, em uma viagem até Manaus, representantes da Central das Associações Agroextrativistas do Rio Manicoré (CAARIM), no sul do Amazonas, receberam um duro golpe. O processo em que pleiteavam para o poder público a demarcação de uma reserva de desenvolvimento sustentável havia sido arquivado, sem maiores explicações.

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“Nos sugeriram que começássemos tudo de novo, do zero. Mas essa é uma luta que se arrasta desde 2006. Resolvi que deveríamos continuar e pedimos, com a ajuda do Daniel Viegas (procurador-geral do Estado), a reabertura do processo”, afirma Maria Cléia Delgado Campina, presidente da CAARIM.

O pedido voltou a tramitar e, em março deste ano, no dia 17 exatamente, uma parte importante do sonho que moveu 16 comunidades tradicionais do interior do Amazonas virou realidade. “A obtenção do CDRU (Concessão do Direito Real de Uso Coletivo) é a prova de que de agora em diante ninguém vai tomar isso da gente”, diz Maria Célia, nascida e criada na região do Rio Manicoré.

O Rio Manicoré, que fica no sul do Amazonas:agroextrativismo éa atividade econômica principal da região. Foto: Valdemir Cunha/Greenpeace

O ato do governo estadual – e ao todo outras 15 decisões semelhantes para outras partes do Estado foram promulgadas – vai privilegiar, naquela parte específica do Amazonas, por volta de 4 mil pessoas, que buscam viver da agricultura sustentável, mantendo a floresta em pé. “Tenho sangue da terra. Hoje, vivemos da farinha, da mandioca, da castanha e de outras atividades produtivas”, explica a presidente da CAARIM.

O fato de as várias associações que existem na região terem se unificado sob um guarda-chuva único é um dos principais trunfos para a obtenção das vitórias que a comunidade vem comemorando, avalia Maria Cléia. “São todos unidos pela floresta. E, agora, vamos continuar lutando para que a reserva seja implementada na área que nós mesmos demarcamos ao longo dos anos, com a atuação de vários parceiros”, diz a líder local.

Resiliência

Existem várias instituições que apoiam os moradores locais na empreitada, como o Instituto Internacional de Educação no Brasil (IEB), a Rede Transdisciplinar da Amazônia (RETA), o Ministério Público Federal no Amazonas e a Procuradoria-Geral do Estado do Amazonas. Além do Manicoré outras regiões do Estado foram contempladas com a emissão de CDRUs, com apoio, por exemplo, da Comissão Pastoral da Terra.

O Centro de Estudos de Sustentabilidade da FGV também atua na região, com as comunidades, desenvolvendo um grande projeto socioambiental relacionado com a possibilidade de reestruturação da BR-319. A estrada que liga Manaus a Porto Velho ainda tem um grande trecho praticamente intransitável. Os 400 quilômetros que ficam no meio do trajeto – nas duas pontas a situação da estrada é melhor– acaba de receber a licença de instalação do governo federal para a obra de repavimentação.

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A readequação da estrada, considerada problemática por cientistas que estudam o desmatamento na Amazônia uma vez que o asfalto pode turbinar a abertura de novos ramais vicinais, usados também por grileiros e desmatadores ilegais, é uma das promessas do presidente Jair Bolsonaro para a região. O Rio Manicoré, localizado no sul do Amazonas, está realmente no olho do furacão. Apesar de ser uma área rica do ponto de vista da biodiversidade por estar entre a floresta típica e o cerrado, é também onde o desmatamento está acelerado nos últimos meses e anos.

Mesmo com a obtenção do documento que dá proteção à terra para as comunidades locais é comum ver na região caminhões transportando toras inteiras ou fatiadas de espécies típicas da região, como o jatobá e o angelim. “Por isso que a nossa luta é diária. Inclusive, até para explicar para os moradores o que significa essas nossas vitórias recentes. Tem muita gente aqui que faz fofoca para tentar diminuir a importância de termos o título e, no futuro, conseguirmos a reserva”, explica Maria Cléia. As associações, mais recentemente, também receberam apoio da ONG Greenpeace.

Segundo Marilurdes Cunha da Silva, professora e uma das lideranças da CAARIM, a pressão de quem é contra a organização das comunidades agroextrativistas está cada vez maior. “Ainda não temos aquelas ameaças diretas, como em outros locais. Mas existem mensagens veladas que às vezes chegam até nós”, explica ela, que mora na região desde que nasceu. “É simples assim. O pessoal que está contra não quer que nós tenhamos direito na terra, porque quem está interessado nela são eles.”

De acordo com Carolina Derivi, pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas (FGV), a organização social dos moradores do Manicoré é algo fora da curva, que merece ser ressaltado. “A criação de uma central de associações comunitárias do Rio Manicoré, de forma autogestionada, em defesa do uso sustentável do território, é tremendamente inovadora”, diz a pesquisadora, que atua in loco na região com frequência. "A Amazônia não seria o que é hoje, aos olhos do mundo, se não fosse o trabalho de organizações de base comunitária, extrativistas, povos tradicionais e indígenas. O socioambientalismo brasileiro é resultado disso e lançou as bases para uma nova agenda ambiental global, até os anos 1980 dominada apenas pela perspectiva da economia e da biologia.”

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O dia a dia do Manicoré, apesar de o agroextrativismo ser a atividade econômica principal e das vitórias recentes em relação à documentação da terra, está longe de ser perfeito. Como em todo interior do Norte do País, a infraestrutura costuma ser carente, principalmente em relação ao esgotamento sanitário e até a geração de energia que ainda é feita à base do diesel. As telecomunicações também são intermitentes.

Deslocamento

O deslocamento para a capital, por exemplo, quando chega a hora de os jovens estudarem na faculdade, também é precário. A passagem de monomotor, segundo Marilurdes, está na faixa dos R$ 800 por uma hora de viagem. A viagem de barco, que dura três dias, sai por R$ 300. Ainda tem a opção da lancha rápida (R$ 500 em 12h) ou do carro pela esburacada BR-319 em uma viagem que leva umas quatro horas. “Aqui, a gente analisa o possível asfaltamento por dois lados. Tem o lado positivo, de transporte, mas vai ter também o negativo, porque muita coisa poderá vir aí por essa estrada”, explica Marilurdes.

A estrada asfaltada, mas sem ações de comando e controle contra crimes ilegais, pode ser mais maléfica do que benéfica. “A política pública precisa fazer a sua parte. Especialmente num momento em que se encaminha a pavimentação do trecho do meio da BR-319, não há forma de evitar os piores cenários de desmatamento sem que se assegurem os direitos sociais, territoriais e econômicos dessas populações”, defende Carolina.

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Correções

Em uma versão anterior deste texto, a frase “A emissão dessas CDRUs é um marco na luta pela terra no Amazonas, mas a assinatura dos documentos pelo governo do estado é apenas um ato dentro de um longo processo de resiliência e parceria entre as comunidades beneficiadas, o IEB, o Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Ministério Público Federal no Amazonas (MPF-AM) e a Procuradoria-Geral do Estado do Amazonas (PGE-AM)” foi erroneamente atribuída à pesquisadora Carolina Derivi, da Fundação Getúlio Vargas. No caso de Manicoré, ocorreu a emissão de uma única CDRU e a Pastoral da Terra não participou desse processo.

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