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'Ciclo do baixo carbono pode ser tão bom quanto ciclos do ouro e do café', diz Joaquim Levy

Ex-ministro da Fazenda e membro do grupo Concertação pela Amazônia diz que Brasil deve ter proposta contra o desmatamento para avançar na COP-26 e defende que transição econômica seja vista como oportunidade

Por Emilio Sant'Anna
Atualização:

Um novo ciclo econômico, o da economia de baixo carbono, bate à porta do Brasil. Se vamos aproveitar a oportunidade ou não, depende cada vez mais da capacidade da sociedade civil e do mercado em se organizarem e caminharem nesse sentido. Hoje à margem das negociações globais entre governos, a gestão Jair Bolsonaro está isolada na discussão ambiental

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O ex-ministro da Fazenda Joaquim Levy vê potencialidades enormes para o Brasil e crê que três pontos nos separam do novo modelo: o desmate crescente na Amazônia e no Cerrado, a necessidade de posicionamento mais técnico do País em negociações internacionais para o mercado de crédito de carbono e a consciência de que esta é uma oportunidade de ouro. 

Ele, atual diretor do Banco Safra, integra a organização Uma Concertação pela Amazônia, que reúne mais de 200 líderes de empresas brasileiras e multinacionais, instituições científicas e sociedade civil em busca de pensar esse futuro. "Perder tempo com coisas que sabemos que não dão resultado significa nem estar na mesa (de negociação), quanto mais ter autoridade na mesa", disse ele em entrevista ao Estadão, às vésperas da COP-26, cúpula que vai debater estratégias para conter o aquecimento global

A entidade de que faz parte nasceu do apagão ambiental da gestão Bolsonaro. Mas para ele, são dessas organizações que as melhores coisas da história brasileira nasceram. Na COP, ele diz que o principal objetivo da diplomacia brasileira deve ser a obtenção do reconhecimento, dentro das regras para uma eventual mercado internacional, do valor da nossa contribuição para a redução de carbono.

Joaquim Levy foi ministro da Fazenda de Dilma Rousseff Foto: Evaristo Sa|AFP

Quais as perspectivas para as negociações brasileiras na COP?

O principal objetivo do Brasil é o reconhecimento, dentro das regras para um eventual mercado internacional, do valor da nossa contribuição para a redução de carbono. Desmatamento evitado, reflorestamento, carbono no solo, biocombustíveis, adicionalidade das energias renováveis (para que um crédito de carbono seja emitido é preciso que se comprove que um projeto ou atividade adiciona vantagem que não existiria sem esse crédito). A gente pode inclusive criar alianças em relação a isso. Adicionalidade da energia renovável, por exemplo, conversa bem com a intenção dos europeus em produzir hidrogênio a partir da hidrólise por energia renovável.

Em paralelo, só temos capacidade de discutir e ter chance de sucesso, se tivermos alguma proposta relacionada a desmatamento porque, afinal, tem mais emissões no desmatamento do que no resto da economia como um todo. Isso que nos dará cacife para negociar com força a proteção de todo o resto da nossa indústria.

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Até aqui, a retórica do governo federal passa longe das tecnicidades e da profundidade dessa discussão.

Todas essas negociações têm o nível político e o nível técnico. Não podemos ficar presos ao nível político e esquecer o técnico. O que alerto há algum tempo é que a gente acha que temos tudo, que somos uma potência verde... Meus amigos, isso é um mercado, você pode achar que é o dono da cocada preta e no fim não ter nada se não negociar a parte técnica.

No nível político, todo mundo já entendeu, a sociedade se mobilizou, nossas empresas, todo mundo já entendeu que o desmatamento não tem vantagem nenhuma, inclusive no agro. Dos indígenas à multinacional todo mundo já se posicionou, até produtor de petróleo fala que isso está claro.

Não adianta, se negociação avançar, você ficar para trás no nível técnico. Para isso temos uma das melhores diplomacias do mundo. Daí a importância de se ter montado um time técnico na diplomacia. Glasgow é um palco político? Claro. Mas também tem uma negociação. No fundo é como se fosse uma negociação comercial. 

Não há contaminação entre esses níveis?

Não diria contaminação. Há uma ligação. Perder tempo com coisas que sabemos que não dão resultado significa nem estar na mesa, quanto mais ter autoridade na mesa. Lógico que a questão política é importante para dar autoridade para discutir as questões técnicas. É assim que as coisas funcionam.

A sociedade civil brasileira está indo à COP de forma muito organizada. É ela que tomou a frente?

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A contribuição da sociedade civil é evidente e está sendo efetiva. Na democracia, é dali que tem que vir as ideias. O governo é um executor. Aíacho que a Concertação pela Amazônia traz um arco que vai desde a liderança indígena, o ribeirinho, o grande empresário, vários segmentos do agro. É assim que as coisas funcionam. Todas as coisas boas do Brasil sempre aconteceram assim. Em países democráticos o governo reflete o que a sociedade acha. Um movimento importante foi que muitos setores, inclusive empresariais, perceberem que não prestar atenção ao desmatamento é um risco à economia do Brasil. Outra é as pessoas começarem a procurar um novo modelo para a Amazônia. O que estamos usando ainda é de 50 anos atrás, com alguns ajustes. A base é um modelo que tem mineração, zona franca e uma adaptação da agricultura naquele modelo dos anos 60, com grandes empresas, e que não deu certo. Então se passou para um modelo em que o governo dá algum apoio de financiamento e certo espaço para as pessoas fazerem o que acham que dá para fazer. É um modelo que não tem grau de produtividade, de distribuição de renda, traz vulnerabilidades para o Brasil e, portanto, requer esforço para pensar e tentar construir um modelo que alcance os objetivos que a sociedade, especialmente a amazônica, esteja interessada.

Como toda produção intelectual não acontece de estalo, requer algum esforço. E, numa sociedade democrática, ouvir muitas vozes. Outro entendimento positivo da sociedade civil é abrir espaço para a complexidade e para soluções.

Esse modelo de desenvolvimento para a Amazônia passa por valorização da diversidade socioambiental?

Tem vários grupos estudando isso. Não tem soluções imediatas e mágicas. Tudo isso requer investimento, pesquisa, desenvolvimento de mercados.

Cooperativa de 172 pequenos e médios produtores rurais de Tomé-Açu explora os recursos naturais locais Foto: OSWALDO FORTE/ESTADÃO

A mudança no modelo econômico tem um tempo de maturação. Estamos acompanhando o bonde da história?

Temos tudo para entrar nesse bonde. No setor energético, temos uma vantagem colossal. Hoje é mais barato expandir eletricidade com solar e eólica do que qualquer outra coisa. O potencial de eólica onshore e offshore é mais ou menos dez vezes toda a nossa capacidade instalada, total. Temos N peças a nosso favor. A gente consegue eletrificar os automóveis de forma muito mais fácil que outros países (que produzem energia elétrica com a queima de combustíveis fósseis). A tecnologia de extrair hidrogênio de produtos orgânicos, quer seja gás natural ou álcool, tem cem anos. A gente consegue fazer isso. Está cheio de empresas que podem nos ajudar. Isso exige grandes subsídios? Não, exige ter um bom apoio da ciência e uma política, e vai se desenvolver em cinco ou dez anos. Vai ser muito mais rápido que em outros países. Ou seja, em 2030 você pode ter uma boa parte da frota pronta para ser eletrificada sem ter de fazer grandes programas, subsídios à indústria automobilística, nada disso. 

Qual impulso é necessário para isso?

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A sociedade vai entendendo. Fazendo num regime democrático, daqui a pouco os deputados se interessam (em apresentar projetos relacionados). Já tem gente interessada. Todo mundo adora falar de reformas microeconômicas, mas para mim o conjunto de: Código Florestal, a lei que saiu de pagamento de serviços ambientais e eventual lei de mercado de carbono é uma mega-reforma microeconômica que facilita para que a gente não perca o bonde. Por quê? Porque cria incentivos de preço, regras de certificação, uma orientação que permite o setor privado e a sociedade tomar suas decisões.

São três componentes fundamentais: resolver o problema de desmatamento na Amazônia, estar atento às questões diplomáticas e negociações internacionais e entender que essa transição é uma oportunidade maravilhosa de desenvolvimento do Brasil. Se você quiser ser muito provocativo, pode dizer que vamos ter mais um ciclo econômico. O ciclo do baixo carbono pode ser tão bom quanto foram os ciclos do ouro, do café. Com a vantagem que vai ser muito mais inclusivo que o do café. Se acha que assusta se planejar para isso, imagine que pode ser até um ciclo econômico como outros, como o próprio ciclo da agricultura que estamos vivendo, resultado da abertura dos mercados e da globalização. Estamos bem posicionados para isso. 

A agricultura teve a Embrapa ajudando a se desenvolver. Estamos atravessando um período muito difícil para a ciência brasileira, com cortes de investimentos. Como vamos nos reposicionar para acompanhar esse novo ciclo?

A ciência brasileira já está dando muitas contribuições. O resto é a sociedade se posicionar para promover a ciência. Na medida em que a sociedade e o setor financeiro vão percebendo as enormes possibilidades desse potencial ciclo de baixo carbono, vamos encontrar os caminhos. De imediato, temos de ter atenção ao que vamos fazer no nível técnico em Glasgow.

A pauta ambiental se tornou uma pauta econômica?

Certamente é uma pauta econômica e o setor financeiro está cada vez mais interessado. Os bancos estão fazendo investimentos e com caráter muito sustentável.

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