Ararinha-azul se prepara para voar de novo na natureza

Sucesso de reprodução no exterior deve acelerar meta que previa solturas apenas em 2021

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Por Herton Escobar
Atualização:

CATAR - Pedro Develey é um daqueles aficionados por aves que enxerga com os ouvidos. Mal colocamos os pés para fora da van e ele já exclama: “Olha aí as ararinhas!”. À nossa frente, do outro lado de uma cerca, no meio do deserto do Catar, dois prédios retangulares cor de areia servem de condomínio para a maior população remanescente de ararinhas-azuis do planeta. Não vemos as aves, mas podemos escutá-las. São 6h30, hora do café da manhã, e a passarinhada não nega as raízes brasileiras, fazendo uma algazarra danada. “Essa é a música que eu sonho ouvir um dia na caatinga”, diz Develey, ansioso para ver as lendárias ararinhas com os próprios olhos.

A última vez que o canto de uma ararinha-azul foi ouvido na caatinga brasileira foi 15 anos atrás, em outubro de 2000, quando o último macho conhecido da espécie desapareceu das matas de ipê-amarelo do interior de Curaçá, no extremo norte da Bahia. Atualmente, elas existem apenas em cativeiro, e quase todas fora do Brasil. Vítima do tráfico internacional de animais silvestres, a espécie é considerada extinta na natureza. “Foram roubadas de nós, literalmente, uma a uma”, lamenta Develey, biólogo e diretor científico da Sociedade para a Conservação das Aves do Brasil (SAVE Brasil).

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O momento, porém, é de alegria. Avanços recentes nos esforços de reprodução em cativeiro permitiram ampliar significativamente a população global de ararinhas, e o sonho de reintroduzir a espécie na natureza começa a se tornar verdadeiramente factível. A meta oficial do Plano de Ação Nacional para a Conservação da Ararinha-azul, criado em 2012, é fazer as primeiras solturas em 2021, quando se estimava que o número de animais em cativeiro chegaria a 150; mas é provável que essa contagem seja atingida já nos próximos dois anos, permitindo acelerar o processo de soltura.

Essa, pelo menos, é a esperança que emana da sinfonia de araras à nossa frente. Das 110 ararinhas-azuis registradas no programa internacional de reprodução em cativeiro, apoiado pelo Brasil, 86 estão aqui, no Al Wabra Wildlife Preservation (AWWP), um criadouro particular no deserto do Catar, a 35 quilômetros da capital Doha - bem no centro do país, próximo de uma enorme pista de corrida de camelos. As outras estão divididas entre um criadouro na Alemanha e outro, no Brasil - 12 para cada lado.

Criado pelo sheik Saud Bin Mohammed Bin Ali Al-Thani, um excêntrico colecionador de obras de arte (morto em 2014, por problemas de saúde), o local servia originalmente como uma fazenda de passeio da família, gradativamente transformado em centro de excelência em conservação e reprodução de bichos ameaçados de extinção, principalmente aves e mamíferos. São 2 mil animais ao todo, de 90 espécies.

A ararinha-azul é a espécie ícone da instituição. O plantel inicial da espécie, de 47 aves, foi comprado de outros criadores na Suíça e nas Filipinas, entre 2002 e 2003. Segundo o atual diretor da AWWP, o biólogo sul-africano Cromwell Purchase, as ararinhas estavam em péssimo estado de saúde, muitas delas extremamente doentes. “O sheik ficou sabendo da situação e adquiriu as aves para cuidar delas”, conta o pesquisador. Depois disso, a população quase que dobrou, graças em parte ao desenvolvimento de técnicas de inseminação artificial - algo que apenas a equipe do Al Wabra conseguiu fazer até agora. Só este ano, juntando os criadouros dos três países (Catar, Alemanha e Brasil), já nasceram 20 ararinhas, 5 delas por reprodução assistida.

“Essa foi a grande virada de página”, diz a pesquisadora Cristina Miyaki, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo, responsável pelos estudos de DNA das aves do programa. “Me sinto muito mais tranquila agora.”

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Só com reprodução natural, diz ela, seria difícil garantir um crescimento estável da população. As poucas ararinhas que deram origem a essas populações de cativeiro eram todas muito próximas geneticamente - como irmãs ou primas -, e por isso as taxas de fertilidade da espécie hoje são muito baixas. Dentre as 110 ararinhas, apenas quatro casais já se reproduziram naturalmente com sucesso.

A solução, dizem os cientistas, é aumentar a variabilidade genética da população. Esse foi um dos temas da última reunião do Grupo Assessor do Plano de Ação (PAN), realizada semana retrasada no Catar, que a reportagem do Estado acompanhou com exclusividade. Foi assinado um termo oficial de cooperação entre a Al Wabra e o governo brasileiro, permitindo pela primeira vez um intercâmbio de ararinhas entre os dois países. A parceria já existe há alguns anos, mas faltava confiança dos árabes para a transferência de aves para o Brasil, e vice-versa.

“Havia desconfiança com relação ao programa e sua real viabilidade”, disse a veterinária Camile Lugarini, do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Aves Silvestres (Cemave-ICMBio), órgão ligado ao Ministério do Meio Ambiente, que coordena os esforços de reintrodução da espécie na natureza. “Só agora que criamos essa confiança mútua podemos transferir os animais, o que é muito importante para a continuidade do trabalho.”

Duas fêmeas mais velhas do Nest - o criadouro paulista responsável por cuidar das ararinhas brasileiras -, chamadas Mela e Yara, foram enviadas para o Catar em 20 de outubro, para serem cruzadas com machos do Al Wabra via inseminação artificial. Em troca, a instituição árabe enviou ao Brasil um casal de ararinhas jovens, com um ano e meio de idade, que vão conviver com outros dois casais: um nascido no Nest (Andrea e Saoud) em outubro de 2014, e outro emprestado da Alemanha (Carla e Tiago), em março deste ano.

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Cada par representa uma linhagem genética diferente. A expectativa é que eles formem casais, se reproduzam (naturalmente, ou com uma ajudinha da ciência) e assim injetem mais diversidade genética na população.

Se tudo correr bem, é possível que Develey um dia escute os descendentes desses jovens casais cantando sobre um ipê-amarelo no sertão nordestino. “Saio daqui contente, convencido de que esses caras estão salvando a espécie”, conclui o biólogo brasileiro, impressionado com o trabalho do centro árabe. “Só não digo que já salvaram porque a espécie só é válida na natureza. Quando elas estiverem voando de novo na caatinga, aí sim, estarão salvas.” 

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