A jornada de 1,2 mil quilômetros para salvar uma onça

Felino foi resgatado ferido nas margens do Rio Corixo Negro, em Poconé (MT)

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Por Vinícius Valfré
4 min de leitura

“Quanto menos vocês falarem, melhor. Não quero que ela se acostume com a presença humana.” A advertência da ativista Cristina Gianni vem à voz baixa, mas firme. Ela alerta que Ousado, uma das onças-pintadas resgatadas no Pantanal com ferimentos graves nas queimadas do começo do mês, será sedado pelos veterinários para mais uma sessão de exames e troca de curativos nas patas, que têm queimaduras de segundo grau.

No dia 11, o Estadão se deparou com o felino ferido na margem do Rio Corixo Negro, em Poconé, Mato Grosso. Após ser resgatado por ambientalistas, enfrentou 1,2 mil quilômetros em barco, helicóptero e carro, até a sede da ONG Nex no Extinction, em Corumbá de Goiás, a 85 km de Brasília, especializada em salvar animais de porte.

Pata de Ousado, onça-pintada do Pantanal, após incêndios no bioma Foto: Dida Sampaio / Estadão Conteúdo

Ousado apresenta um quadro surpreendente de recuperação. As terapias a laser e ozônio têm acelerado a regeneração dos tecidos das “almofadinhas” das quatro patas. Inicialmente, a previsão era de que ele deveria estar apto a voltar para casa no final de outubro. Agora, estima-se que, em 15 dias, possa sair. A outra notícia é que os especialistas estão preocupados com a reintrodução do animal num ambiente destruído. Caberá ao ICMBio definir quando, onde e como a onça será devolvida. No entanto, técnicos confidenciaram ao Estadão que as chances de a esperada soltura ocorrer em meados de outubro é mínima em virtude do impacto das queimadas.

O incêndio no bioma foi só o começo. O fogo destruiu 85% dos 108 mil hectares do Parque Estadual Encontro das Águas, uma das regiões de maior concentração de onças do planeta. As chamas acabaram com áreas de refúgios e boa parte da cadeia alimentar. Os especialistas temem ainda que o animal tenha dificuldades de dividir com outros o espaço natural, reduzido pelas labaredas. Antes da série de queimadas, 85 felinos viviam no parque de 108 mil hectares, segundo estimativas oficiais.

Foram os pantaneiros que batizaram Ousado. O animal gostava de se exibir na beira do rio e não se importar com o barulho das voadeiras. Agora, no cativeiro, está agressivo, esturra ao entrar na mira de humanos. São características ótimas para quem precisa voltar para a natureza. Come vorazmente os 3 quilos de carne de frango e de porco que lhe são lançados diariamente e demandou um anteparo extra no cubículo de 4 metros por 2 onde foi instalado porque estava transferindo a hostilidade para as grades do recinto.

Além de Ousado, a entidade cuida de outra onça salva do fogo no Pantanal. Amanaci, uma fêmea, foi resgatada em agosto. Ela recebe injeções de células-tronco. É um caso mais grave de queimadura, de terceiro grau. As “almofadinhas” foram totalmente comprometidas. A sua volta a Mato Grosso ainda é incerta. Outros 21 felinos vivem na sede. Mas, ao contrário de Ousado, não têm mais condições de se readaptar ao ambiente natural.

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Aos 75 anos, a design Cristina e o marido, o administrador Silvano Gianni, de 78, ambos paulistas, fundaram em 2001 a ONG que se tornou a maior referência na recuperação de onças no País. A entidade funciona numa fazenda de 200 hectares. “Aprendi que o amor à liberdade é o mesmo, embora nossas expressões físicas sejam diferentes”, afirma Cristina. O casal gasta R$ 20 mil por mês na entidade. Uma boa parte vem de parceiros, pessoas físicas e empresas.

Ousado tem tratamento VIP. A cada dois dias, ele é retirado do recinto para procedimentos que envolvem até dez profissionais. Em duas semanas, a aplicação de medicamentos em um ambiente de centro cirúrgico consumirão R$ 10,5 mil. Todos seguem os comandos do médico veterinário Thiago Luczinski, responsável pelos animais tratados no NEX e por controlar o processo de sedação.

No alto, o soro é empurrado pela gravidade para dentro da veia da onça. O ritmo do coração do felino desacordado varia entre 75 e 80 batimentos por minuto e sua temperatura corporal gira na casa dos 38ºC. As condições são perfeitas para que as demais profissionais apliquem as técnicas. Ousado é submetido a terapias com laser e ozônio oferecidas por voluntárias que se deslocam de Brasília quatro vezes na semana para oferecer experiência, equipamentos e tempo à disposição dos bichos.

Bióloga e veterinária especialista em animais silvestres e exóticos, Karolina Vitorino leva um caro e sensível equipamento de raio laser para aplicar na onça a técnica que observa como muito eficaz nos coelhos e porquinhos da índia que têm como pacientes. Enquanto trata de Ousado, sua clínica em Brasília fica sem a retaguarda. “Deixo de ganhar, mas obviamente não penso na questão financeira. Penso no benefício que gero para o Ousado”, disse.

O laser é conjugado com uma outra técnica, também oferecida por veterinária voluntária. Cabe a Nathália Lira, especialista em reabilitação de animais, criar invólucros nas patas feridas de Ousado e enchê-los com ozônio. Os dois procedimentos criam efeito anti-inflamatório e ajudam a amenizar a dor e a reverter as lesões. “Basta comparar com a gente e pensar no que acontece quando queimamos um dedo. Imagine ter as quatro patas com queimaduras de segundo grau”, frisou Luczinski. 

Quando Ousado foi recolhido, nativos estimaram, com base no tamanho, que se tratava de um jovem exemplar macho de no máximo 2 anos. Em duas semanas, seu peso passou de 70 kg para 75 kg. O exame minucioso do tamanho e da coloração amarelada dos dentes indica que ele pode ter entre 5 e 6 – na natureza, uma onça-pintada pode viver cerca de 15 anos.

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O primeiro terço da vida do animal foi vivido totalmente livre nas matas de várzea dos rios que cortam o Parque Encontro das Águas. Veterinários que encontraram o felino avaliaram que o animal tinha feito uma longa caminhada para chegar ao rio, onde podia sobreviver. A astúcia e a agilidade de Ousado não foram suficientes para evitar as queimaduras.