Moradores de SP se unem para construir um 'bairro dos sonhos'

Comunidades das Vilas Jataí, Beatriz e Ida, na zona oeste de São Paulo, se mobilizam para melhorar região e transformá-la em um ecobairro

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Por Giovana Girardi
Atualização:
Moradores das Vilas Jataí, Beatriz e Ida reunidos na Praça Comendador Manoel de Melo Pimenta, zona oeste paulistana, estão mobilizados para transformar a região num ecobairro. Na foto, eles jogam para cima folhas caídas que passaram a ser usadas para enriquecer o solo Foto: WERTHER SANTANA / ESTADÃO

Construir do zero um bairro sustentável, com as tecnologias disponíveis hoje em dia, é até fácil, mas o que fazer com bairros antigos, consolidados, com nascentes ocupadas, poucas árvores, córregos poluídos e na mira dos projetos de adensamento populacional? Como fazer um bairro normal, com problemas, se transformar em um ecobairro? Esse é o desafio que se propôs a enfrentar um grupo de moradores das vilas Jataí, Beatriz e Ida, na zona oeste paulistana.

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Na verdade, eles só foram entender esse conceito mais recentemente. No começo era só um sonho. O “bairro dos sonhos”.

As ideias de transformação, que começaram quase como uma brincadeira em uma barraca na festa junina anual da Vila Jataí – onde os moradores eram convidados a deixar post-its com mensagens sobre o que gostariam de ter ou ver no bairro –, num primeiro momento refletiam mais o que eles não queriam: grandes prédios, grandes comércios, violência.

“Havia uma dificuldade em sonhar”, lembra a administradora Cecília Lotufo, dona de uma pizzaria no bairro e uma das idealizadoras da mobilização. Mas com o passar do tempo, o simples fato de os moradores se unirem no processo de construção da festa possibilitou que eles começassem a enxergar o que era possível mudar no bairro. Com as próprias mãos ou por meio de solicitações ao poder público.

“Fomos alimentando a ideia de ter um ecobairro antes mesmo de ter o nome”, diz Cecília, que acabou se tornando membro do Conselho Municipal do Meio Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável (Cades).

Foi assim que conseguiram recuperar uma casa da prefeitura abandonada havia quase 15 anos, na Praça Valdir Azevedo, na Vila Ida, que se tornou sede do grupo. O trabalho de revitalização, que incluiu também a própria praça, serviu de piloto para a criação da lei sobre gestão participativa de praças, sancionada pelo então prefeito Fernando Haddad, em 2015.

 Foto: Estadão

Busca das nascentes. Com a casa, surgiram as preocupações com a água. Não havia fornecimento na rua, então os moradores bolaram um sistema de captação da água da chuva. Hoje o grupo Jovens Profissionais do Saneamento trabalha na construção de cisternas com filtros. “Veio a ideia de ser sustentável, ver a coisa completa, entender a situação dos córregos, das nascentes”, conta Cecília.

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O grupo, que nessa altura já tinha se aliado a moradores da vizinha Vila Beatriz, onde fica a hoje famosa Praça das Corujas, começou um trabalho de mapeamento das nascentes. Descobriram que estão em uma região particularmente rica. Apenas em uma caminhada de 3 km, na qual dezenas se engajaram, eles encontram 16 nascentes. Muitas em péssimas condições, com ocupações irregulares.

A mobilização foi chamando a atenção de outros moradores. “As pessoas saíram na janela e contavam sobre as nascentes que tinham debaixo de suas casas”, conta Mauricio Ramos de Oliveira, vizinho da Praça das Corujas, que faz junto com outros moradores da região o monitoramento da qualidade da água do Córrego das Corujas.

Este trabalho, aliás, já rendeu frutos. Parte de um projeto mais amplo de monitoramento de rios e córregos em toda a cidade conduzido pela SOS Mata Atlântica, as análises feitas no Corujas promoveram um engajamento da comunidade que ajudou a afastar o esgoto que era despejado irregularmente.

Entre 2010 e 2014, no início dos trabalhos, a qualidade da água sempre variava entre ruim e péssimo. No ano passado ficou em média regular, mas a apenas 0,4 ponto de entrar no índice bom. Em janeiro e fevereiro deste ano, pela primeira vez, alcançou o nível bom, caindo novamente em março para o regular. "É um regular+, um quase bom. Com as ações da população, o córrego deixou de ser fétido, a população abraçou o Corujas", afirma Malu Ribeiro, coordenadora da Rede das Águas da SOS e responsável pelo levantamento.

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Plano diretor. Depois das nascentes, a comunidade fez outros estudos, como de declividade e de ocupações irregulares, que fornecem informações importantes desde sobre riscos de desmoronamentos e de enchentes a até proliferação de mosquitos.

A ideia era nortear como devia ser o ordenamento territorial, num momento em que se discutia na Prefeitura o novo Plano Diretor da cidade. A proposta da administração era transformar os bairros em zona mista, com maior adensamento, para aproximar mais gente dos corredores de transporte público que cercam a área. Isso a comunidade não queria.

“Não era um lobby de elite que quer proteger seu modo de vida, mas vimos que já tínhamos tantos problemas. Propusemos um adensamento menor, com prédios de quatro andares em vez de oito, e a transformação de casas abandonadas enormes que temos na região e que poderiam virar moradias coletivas”, explica Cecília, sobre a sugestão que o grupo fez no plano de bairro enviado à Prefeitura para que a região fosse uma zona preferencialmente residencial (ZPR), o que foi aceito.

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O trabalho de declividade mostrou, por exemplo, que a Cerro Corá é a área mais alta da região e, justamente por isso, concentra as nascentes. Mas por ser um corredor de ônibus, era um atrativo para o adensamento. “Pensamos num zoneamento especial para blindar as nascentes. É um corredor, mas é também uma área de proteção ambiental”, diz Cecília.

“Esse olhar atento que busca o contexto da microbacia é uma premissa para o ecobairro, mas deveria fazer parte de todo zoneamento”, explica a arquiteta Lara Freitas, especialista em ecobairros que se uniu ao grupo inicialmente como consultora e hoje faz parte dos trabalhos.

No projeto de ecobairro das Vilas Beatriz, Ida e Jataí, uma das ações práticas foi aumentar a permeabilização das ruas dos bairros, com a criação, por exemplo, desse "jardim de chuva". A escolha do local para o plantio se deu em razão da declividade das ruas. Por ali desciam enxurradas que poderiam ser absorvidas pela vegetação Foto: WERTHER SANTANA / ESTADÃO
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‘Jardim de chuva’. Outro resultado prático de toda essa mobilização foi um trabalho de melhoria na manutenção das praças da região e de aumento da arborização e da permeabilização das ruas. Capitaneado pela médica Thaís Mauad, a ideia foi pedir autorização a Prefeitura Regional de Pinheiros para a transformação de canteiros de ruas, até então cobertos apenas de asfalto, em áreas verdes. Isso já foi feito em oito. Um deles virou um “jardim de chuva”, uma espécie de florestinha, e os outros foram alterados com técnicas de permacultura típicas das hortas urbanas.

“Com a vegetação, a água, em vez de escorrer pela rua, é absorvida, passa por um processo de filtragem e ou vai mais devagar para o esgoto ou acaba aumentando o lençol freático”, explica Thaís.

O projeto foi doado por um paisagista. O material foi comprado pela comunidade e coube à Prefeitura apenas autorizar a modificação.

O grupo também promoveu plantio de árvores em uma avenida que não tinha praticamente nenhuma e melhorou o manejo das praças. Folhas caídas, que antes, nos trabalhos de varrição, acabavam indo para aterros, passaram a ser usadas para “coroar” o entorno das árvores, o que enriquece o solo e traz mais umidade e proteção.

Em outra frente, foi proposta a abertura das caixas de árvores de ruas, um dos principais motivos de estrangulamento das plantas e suas eventuais quedas. Agora, o grupo estuda colocar composteiras nas praças para digerir o material orgânico. E no planejamento da festa junina deste ano, a ideia é que ela seja “resíduo zero”.

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Tudo isso faz da região um ecobairro? Talvez ainda não, mas é um bom começo. “O mais importante é entender que ecobairro não é um projeto, mas um processo sem fim. É um programa permanente”, ensina Lara.

Canteiro aberto na Vila Jataí para aumentar as áreas permeáveis do bairro, no projeto de desenvolvimento de um ecobairro Foto: WERTHER SANTANA / ESTADÃO

POR DENTRO DOS ECOBAIRROS

Conceito Não há uma definição única, segundo a arquiteta Lara Freitas, que pesquisou ecobairros em todo o mundo em seu mestrado na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), mas em geral envolve a construção de um bairro novo ou modificações para tornar uma área já existente justa nos aspectos ecológicos, econômicos e sociais. Inclui a busca por um melhor desempenho (do uso dos recursos naturais ou de energia, por exemplo) e uma qualidade de vida maior do que num bairro normal.

Origem Apesar de haver algumas experiências da década de 1970, foi a partir da conferência Rio-92 (ou ECO-92) que começaram discussões mais concretas sobre desenvolvimento sustentável no mundo e que os ecobairros ou ecovilas começaram a se proliferar. Apesar de o Brasil ter abrigado o evento, aqui a ideia não vingou e voltou a ser mais discutida apenas nos últimos anos e ainda há poucos programas em andamento. É na Europa que o modelo é mais consolidado. A maior compreensão científica sobre as mudanças climáticas causadas por ações humanas têm incentivado esses projetos.

Modelos Um exemplo consagrado é o da Fundação Findhorn, em Forres, na Escócia. Talvez a mais antiga no mundo, de 1962, desde a criação ela foi pensada para ser uma vila ecológica. As casas foram construídas com materiais locais (incluindo barris de uísque), há tecnologias inovadoras de tratamento biológico do esgoto, a vila gera boa parte da sua energia com turbinas eólicas e aquece a água com painéis solares. Também produz parte dos alimentos com agricultura orgânica ou compra de produtores locais. Com tudo isso, o impacto da ecovila (a chamada pegada ecológica) é metade da média do Reino Unido.

Ações mais simples Mas não é preciso viver no mundo ideal de Fidhorn para aderir à ideia. Bairros já existentes nas cidades podem passar por transformações que tornem o local mais verde, menos poluído, com menos problemas como de enchentes ou proliferação de mosquitos, com menor geração de resíduos e maior integração social. Para especialistas, o segredo está no último ponto. Afinal as mudanças têm a ver com o cotidiano das pessoas.

Poder público No Brasil, a maior parte das ações têm partido ou de comunidades engajadas ou da academia e de ONGs, mas a ideia é que, para crescer e ganhar escala, é importante interagir com o poder público. Primeiro porque algumas coisas, como abrir uma caixa de árvore na calçada ou criar um jardim de chuva, dependem dele; segundo porque, com ele, as ações podem ser ampliadas para outras regiões.

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