Mico, sem-terra e ensino

Casal que largou tudo pela biologia ajudou a salvar espécie e lançou bases para educação ambiental

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Por Giovana Girardi
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"Viva 1977!" A plaquinha com esses dizeres que ficava pendurada em uma parede da casa de Suzana e Claudio Padua costumava servir para lembrar ao casal, nos momentos de dificuldade financeira, que o ano em que Claudio tinha resolvido largar a carreira bem-sucedida como administrador para virar ambientalista simbolizava uma decisão acertada. Ouça trecho da entrevista Foi uma mudança drástica de rumos que resultaria, alguns anos depois, no salvamento de ao menos uma espécie da mata atlântica, no desenvolvimento de um projeto de educação ambiental que envolve de assentados sem-terra de São Paulo a comunidades tradicionais da Amazônia e na criação de uma das ONGs ambientais mais engajadas do País, o Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ). Essa história começou quando Claudio "enlouqueceu", como hoje brinca Suzana. Aos 30 anos, já com o primeiro filho nascido, mas sem ver sentido no que estava fazendo de sua vida profissional, decidiu largar tudo para fotografar o meio ambiente. Ficou um ano nesse projeto, enquanto a mulher, na época programadora visual, segurava as pontas da casa. Ao ver que o projeto não estava dando certo, ele resolveu procurar emprego na área de conservação, mas foi aconselhado a, antes, estudar biologia. Entrou no primeiro vestibular que viu pela frente, da Universidade Gama Filho, e no fim do curso foi convidado a trabalhar com o primatologista Adelmar Coimbra-Filho, que o levou a conhecer o macaquinho que se tornaria o centro do seu trabalho - o mico-leão-preto, espécie dada como extinta havia décadas. Coimbra havia reencontrado alguns exemplares do animal na reserva do Morro do Diabo, no Pontal do Paranapanema (SP), e Padua se propôs a estudá-lo a fim de salvar a espécie. Quando chegou lá pela primeira vez, em 1984, a população estimada era de cem indivíduos, hoje são pelo menos 1,2 mil, o suficiente para mudar a situação de "criticamente em perigo" para só "em perigo". Em 1987, ele então se mudava com mulher e três filhos para estudar os micos no Pontal para sua tese de doutorado. "Fui acreditando que a gente ficaria um ano, mas ele me engambelou, ficamos três", conta Suzana, com uma piscadela. Após muito choro escondido por não ter nem casa para morar - eles ficaram abrigados no parque -, ela reconhece que ali encontrou também seu novo rumo. Enquanto Claudio investigava os hábitos do mico-leão-preto, Suzana ficava aflita com as pressões ambientais que o parque vinha sofrendo e com a falta de consciência da população. "Ouvia o pessoal perguntando: Por que não põe tudo abaixo e coloca gado no lugar? Aí resolvi que tinha de falar com eles. Mas comecei de forma ingênua, só para dar uma contribuição enquanto morasse lá." Paradoxalmente, o projeto só tomou corpo, e acabou se estendendo para além do período de pesquisas de campo, quando Claudio sofreu um forte revés em suas pesquisas. Na época, estava confiante na promessa de um fazendeiro de proteger um remanescente de mata atlântica que havia em suas terras e onde viviam alguns micos. "Ele me falou para ficar tranqüilo e tranqüilo eu estava. Um dia anoiteceu com o fragmento lá e, no dia seguinte, ele tinha desaparecido e os micos, sumido. Esse momento foi chocante para mim", conta. MUITO ALÉM DOS ANIMAIS O trauma serviu para ele e Suzana descobrirem que se não trabalhassem com gente não teriam resultado. "Até então eu tinha certeza absoluta de que salvaria o mico só com pesquisa, com conhecimento ecológico. Achava que, se eu soubesse tudo, ia poder manejar a espécie e salvá-la. Ledo engano. Naquela ocasião eu sabia tudo, mas isso não ajudou em nada." Era o gancho para iniciar os projetos de educação ambiental. Ele admitiu que, naquela ocasião, não sabia muito bem como convencer as pessoas, então Suzana assumiu a missão. As informações que Claudio coletava na mata sobre o mico e a floresta, ela depois "digeria" e passava de maneira acessível para a população nas escolas, na rádio, em festivais, feiras. "Nós, ambientalistas, tendemos a ser péssimos comunicadores, porque estamos sempre mostrando coisas ruins, perigosas. Descobri que as pessoas querem ter a sensação de participação. E querem saber como podem contribuir." Quando a população já estava engajada, com orgulho de ter o mico-leão-preto como vizinho, começaram as ocupações de sem-terra no Pontal, no início dos anos 90. Suzana achou que, naquele momento, iriam perder tudo o que haviam conquistado, mas, em uma negociação que consideraram histórica, Claudio fechou um acordo de cooperação com o então líder dos sem-terra José Rainha. ENGAJAMENTO SEM-TERRA "Eles propuseram plantar árvores em suas terras. Nós agilizamos o processo, fizemos um viveiro-escola e eles iam lá coletar as mudas. A princípio, só queriam saber de eucalipto, aos poucos fomos conseguindo incluir árvores nativas e frutíferas e depois madeira de lei. O trato foi deixar os assentados cortá-las no futuro, em uns 25 anos, depois que elas já tivessem dado fruto. "Como se fosse uma caderneta de poupança", explica Suzana. Hoje, o trabalho de conservação do IPÊ continua com cerca de 450 famílias de assentados na região do Pontal. Ao mesmo tempo em que cultivam suas roças e pequenas florestas de eucalipto e criam gado, operam 25 viveiros comunitários de árvores nativas, obtendo uma renda extra com a venda de mudas. Alguns plantam café orgânico com floresta - árvores nativas em meio ao cafezal para conferir-lhe uma temperatura mais amena, ao mesmo tempo que serve para o reflorestamento. Em geral, tanto os assentados quanto fazendeiros do Pontal colaboram com o IPÊ em projetos de corredores ecológicos e reforço das bordas do parque para garantir a conservação dessa biodiversidade. Do lado feminino, Suzana criou um sistema de artesanato de camisetas com motivos da natureza e buchas em formato de bicho. "Elas foram aprendendo que só vão ganhar se a natureza ganhar. Não terá como fazer bordado do mico, por exemplo, se o animal não existir mais na região", afirma. "A gente juntou a educação ambiental com a possibilidade de essas pessoas melhorarem de vida economicamente. Trouxemos uma alternativa de desenvolvimento sustentável", complementa. DO PONTAL AO MESTRADO E o aprendizado ocorreu dos dois lados. Tanto Suzana quanto Claudio foram experimentando, na prática, formas de atingir essa população, enquanto também formavam uma nova equipe de pesquisadores e educadores ambientais. O conhecimento adquirido foi tanto que, em meados da década de 90, Claudio começou a bolar a criação de um mestrado do próprio IPÊ em conservação. "Fazendo uma reflexão recentemente percebi que o que eu fiz de mais legal na vida foi não aceitar o não. Todo mundo me dizia que uma ONG não pode ter um mestrado. Se eu tivesse aceito isso, não teria feito esse projeto tão bacana", conta. A idéia ficou mais de 16 anos em gestação, mas nasceu, enfim, neste ano. Em março, teve início na sede de Nazaré Paulista a primeira turma do mestrado profissional em ecologia. É o primeiro curso de uma universidade que está em planejamento. "Passamos esse período todo formando a base das pessoas que dariam aula nesse mestrado. Criamos no IPÊ dezenas de novos pesquisadores", afirma Claudio. "Quando falei disso pela primeira vez, em 1992, para a USP, eles não me entenderam, não gostaram muito da idéia de haver uma pós mais voltada para a ação e não só para o procedimento tradicional de tese ir para a prateleira. Então acho que a demora foi válida para criarmos um pequeno exército com esse pensamento inovador."

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