‘Ideia de ambiente não produtivo é um erro conceitual’

Para biólogo espanhol, que lança livro no Brasil, natureza oferece seu ‘espetáculo’ como produto a visitantes

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Por Giovana Girardi
Atualização:

Em meio a um debate crescente no Brasil de oposição entre conservação da natureza e produção rural, um biólogo espanhol com ampla experiência na Argentina em unir os dois lados está movimentando ambientalistas, empresários, gente do agronegócio e governantes em torno de um novo conceito: “Produção de natureza”.

País tem de mostrar áreas grandes, diz Pérez Foto: CHRIS ROCHE

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Este é o tema e título de um livro que está sendo lançado esta semana no Brasil pelo biólogo Ignacio Jiménez Pérez, cujo conteúdo está influenciando dois projetos no País, na porção de Mata Atlântica entre o norte de Santa Catarina e o sul de São Paulo, e no Pantanal.

A obra, lançada online pela Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS), ONG do Paraná, reúne a experiência da Argentina, na região dos Estuários de Iberá, mas também dos safáris na África do Sul, dos parques nacionais dos Estados Unidos, entre outros.

Em prólogo do livro, Kristine Tompkins, da Conservation Land Trust, entidade que inspirou o trabalho de Pérez, comenta que o livro é um “manual prático para a ação positiva em favor da vida na Terra”. Em São Paulo, ele falou ao Estado sobre o conceito e também sobre os conflitos em torno do tema que o Brasil está experimentando recentemente.

Ele chamou de “demagogia nacionalista” criticar os países ricos por terem desmatado no passado e disse que a ideia de criar uma espécie de Cancun brasileira em Angra dos Reis, revogando o decreto que criou a Estação Ecológica de Tamoios, seria como colocar um shopping center dentro da Catedral de Notre Dame, em Paris.

Como o sr. define esse conceito de “produção de natureza”? É dar uma volta na visão tradicional do século 20 de que a natureza bem conservada é vista como área só para conservação. Essa ideia do ambiente como algo não produtivo é um erro conceitual, particularmente em um mundo em que a demanda global por natureza cada vez mais aumenta. Em qualquer país, há áreas naturais grandes, de qualidade. Elas são como fazendas que, em vez de produzir gado, soja, produzem ecossistemas naturais. São “fazendas” produtivas, mas o produto que criam é fundamentalmente um espetáculo. Porque tem uma série de clientes no mundo esperando para poder visitar essas áreas e desfrutá-las. Em um mundo majoritariamente urbano, há  demanda por parte dessa população urbana de periodicamente sair e desfrutar de algo diferente, uma natureza de qualidade. Essa demanda se expressa em visitação e isso se expressa na transferência de recursos econômicos de áreas urbanas para áreas rurais. Isso gera emprego e não somente faz uma transferência econômica, como muda a percepção das populações locais, que passam a deixar de pensar coisas como: ‘eu vivo em uma área remota, que não serve para nada, onde só tem mato’. É normal que os locais pensem que o que eles têm não vale nada, mas quando os visitantes vão e dizem que vão até lá porque gostam justamente do que eles têm, além de isso trazer empregos, cria uma mudança. sso muda o olhar. Percebem que têm sim algo: tranquilidade, ar puro, fauna. Além dos benefícios materiais, passam a ter a sensação de que faz sentido morar lá. Não precisam ir para a cidade para ter uma vida melhor.

Ou desmatar... Exatamente. Percebem que não têm que destruir aquilo que antes lhes disseram que não valia nada. Percebem que algo que é já deles, que não precisam criá-lo, somente cuidá-lo, vale muito.

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Em teoria, os parques nacionais são para isso. O que falta? Por que o sr. acha que ainda não se deu esse passo no Brasil? O conceito de “parque de papel” tem muita força no Brasil. Em algum momento da história, não se teve sucesso em mostrar os parques como áreas produtivas. Talvez porque ambientalistas acharam que era melhor ter parques fechados – porque o turismo poderia ser uma ameaça –, talvez porque os governos decidiram não investir em pessoal, porque era mais barato deixá-los sozinhos, e se converteram em “parques de papel”. Talvez porque houvesse interesses que preferiam que ficassem como parques de papel. Só chamar de parque não o converte em área produtiva. E um parque só é produtivo quando está bem cuidado: a fauna está preservada, não há impactos dentro que destruam o produto. Isso é o mesmo que ocorre com um museu, uma catedral.

Quais exemplos de produção de natureza o sr. indicaria como modelo para o Brasil? É importante entender que há exemplos de parques com esse sucesso tanto em países ricos quanto em países pobres. Existe esse mito de que os países ricos destruíram sua natureza e por isso ficaram ricos…

Esse tem sido um argumento do presidente Bolsonaro ao reclamar de críticas da Europa ao desmatamento da Amazônia... Isso é demagogia nacionalista que já ouvi tanto da esquerda quanto da direita. Não coincide com a realidade. Particularmente, Alemanha e Japão conseguiram seu desenvolvimento industrial, ao final do século 19, a partir de uma política de conservação de bosques. As pessoas que repetem isso é porque não estudaram História. Estados Unidos são um exemplo clássico. Eles criaram o primeiro parque nacional do mundo. Poderia ter sido um fracasso, mas conseguiram criar o melhor sistema de parques do mundo. E entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, a população se apropriou desses parques e passou a vê-los como uma coisa dela. Os americanos visitam muito seus parques. Na África do Sul ocorre o mesmo. Começou a partir de uma minoria branca, mas hoje, com o processo democrático, os parques nacionais são uma das principais fontes de renda com o turismo. A África do Sul tem o dobro de turistas que o Brasil. As pessoas vão para lá para ver natureza. E eles têm muito menos território natural que o Brasil. Costa Rica é um caso notório, porque é muito pequeno e conseguiu criar não só uma economia a partir da produção de natureza, com os parques e o ecoturismo, como conseguiu criar uma imagem internacional excelente a partir disso. Internacionalmente, um país vai ter uma melhor imagem se cuida da natureza do que se a destrói. Da mesma maneira que tem uma melhor imagem se cuida da democracia do que se a destrói. Argentina é um país com uma tradição de parques naturais forte, e a gestão atual, de (Maurício) Macri, tem claramente apostado nisso para posicionar-se num mercado turístico mundial. Brasil tem os ingredientes para posicionar-se nisso, não tem que fazer grandes revoluções, mas tem que acreditar nisso. E tem de escapar de mensagens populistas que não criam soluções. Isso é para um minoria que tem outros interesses.

O governo defende ideias como transformar a região de Angra dos Reis em uma nova Cancún. O que o senhor acha disso? Essa história de Cancún dentro de uma área protegida… vista de fora seria o equivalente ao governo da França dizer que precisa melhorar a economia e, para isso, vai criar um shopping dentro da Catedral de Notre Dame. Há um lugar na sociedade para cada coisa.  O Brasil, que não é um país com poucas praias, poderia ter três, quatro 'Cancuns' perfeitamente, mas não onde há uma área protegida. Se tem praia de sobra, para quê isso? Aliás, o Brasil já tem sua Cancún. Se chama Florianópolis.

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Já existem no Brasil iniciativas para melhorar o turismo em parques. O que é necessário para ganharem escala e relevância? O Brasil tem muitos casos de sucesso, como Cristalino (parque estadual em Mato Grosso), Fazenda Caiman (em Mato Grosso do Sul). São Paulo tem parques estaduais de qualidade, que podem competir com Costa Rica. Mas essa política de dizer que tudo é ruim e olhar o copo meio vazio impede de transmitir à sociedade esperança e orgulho. Se a agenda ambiental é ruim, fica muito fácil que alguns setores digam: como é ruim, vamos destruir. O exemplo contrário é o do “agro é pop” – uma campanha bem pensada em que tudo no setor é fantástico. Comunicam isso de uma maneira muito efetiva. Creio que a chave nesses processos de produção de natureza no Brasil é mostrar áreas grandes… E por que grandes? Porque têm de ser competitivas na escala mundial. É preciso se projetar para o mundo, não só para atrair pessoas de fora, mas para que também os locais sintam que sua área é importante quando o mundo fala dessa área. É uma mudança psicológica. No caso da Grande Reserva Mata Atlântica e o que estamos começando no Alto Pantanal é resgatar histórias de sucesso que existem. E são muitas. Tanto de um parque que funciona bem – pode ser o Petar, ou Carlos Botelho –, mas mesmo uma pousada especialmente boa, um festival que trabalha com a cultura local. A ideia é conectar essas coisas positivas dentro de uma determinada área. E transmitir uma história de encantamento, de sucesso ao redor de uma área concreta. Foi o que ocorreu em Iberá, onde trabalhei por muitos anos. O conceito de produção de natureza surge na Argentina porque não estávamos conseguindo convencer a sociedade de que era importante ter um parque ali. Então tivemos de reinventar o relato. Em vez de falar apenas sobre prioridade ambiental, passamos a falar de bem-estar econômico e social. E virou um caso de sucesso.

O sr. se baseou na sua experiência na Argentina e também nas de outros países. O Brasil é muito diverso, com vários biomas. Esse conceito tem dicas básicas que podem ser aplicadas em quaisquer lugares? Creio que a produção de natureza, de converter os ecossistemas naturais em um bem que a sociedade valoriza funciona igual em Brasil, no Tibete, em Botswana, Estados Unidos ou Canadá. Como se aplica isso em cada contexto varia. Os dois casos brasileiros são regiões muito diferentes. No Pantanal, a maior parte conservada é privada e isso é uma anomalia em nível mundial. A maior população de onça pintada está em propriedades privadas. Há algo na sociedade do Pantanal que faz com que os fazendeiros vivam de forma pacífica com a onça pintada. Mataram muita no passado, mas hoje a população está aumentando. Há mais onças pintadas hoje que nos anos 1970 e 1980. Hoje, ao navegar pelo rio Cuiabá, é fácil ver onças. Então há uma integração entre o público (os rios) com o privado em que as onças prosperam. O contexto cultural e ecológico marca as regras. Já a Mata Atlântica tem um avanço urbano muito forte. O que é preciso fazer é buscar entender o contexto, ler a cultura, os ecossistemas, as preocupações da sociedade. A primeira regra é entender o que preocupa as pessoas e como é possível satisfazer essa preocupação com a natureza. O que preocupa em Cuiabá é diferente de em São Paulo. Na Espanha, há uma preocupação com o abandono rural. Se eu promovo produção de natureza lá, ela é uma solução para o abandono rural. No Pantanal, na Mata Atlântica, é uma solução para gerar renda.

Como equacionar isso na Amazônia, em que distâncias são impeditivo até para chegar a parques? Há um truque em grandes áreas protegidas no mundo. Por exemplo, em Yellowstone, nos Estados Unidos, que recebe 4 milhões de visitantes por ano – quase tanto quanto o Brasil –, a área de visitação e de impacto é tipicamente de apenas 1% a 2% da área total. E mesmo sendo pouco, isso acaba justificando politicamente os 100%. A estratégia no Brasil, creio, poderia ser criar alguns blocos na Amazônia. Mas ao promover o local, a narrativa tem de ser de que o turismo nessa pequena área ajuda a proteger todo o resto que está ameaçado. Não precisa criar acesso a toda uma região para conservá-la. Esse acesso acaba tendo um impacto positivo, porque gera emprego, esperança e legitima politicamente toda a região. A mensagem é que há uma oportunidade. Sair do lamento de que as coisas não funcionam. Brasil pode ser um destino turístico de primeiro nível e pode gerar renda a áreas rurais a partir simplesmente de uma mudança tecnológica sobre como se vê a natureza. Isso está começando a acontecer na Mata Atlântica e no Alto Pantanal.

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