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Dante não faria melhor

‘Show do sábado terminou à meia noite, mas só consegui chegar ao meu carro às 5 da manhã’, diz repórter do Estado

Por Guilherme Conte
Atualização:

Como bom devoto do Rage Against The Machine, esperava a costumeira descida para o inferno que são seus shows. E Tom Morello, Zach de la Rocha e seus comparsas não frustraram minhas expectativas. Os problemas técnicos bem que atrapalharam, e fizeram com que não atingíssemos, nos shows, os últimos degraus de Dante. Mas isso é outro assunto; não vou cair em levianas teorias conspiratórias, embora o fato de que o som tenha caído duas vezes, silenciando aquela populosa colina, seja concreto (e inadmissível).

 

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Mas o diabo sempre tem das suas, e mal eu sabia que a metáfora se mostraria mais precisa do que o esperado. Convenhamos que não cabe aqui a frase "eu não imaginava que o inferno, afinal, estava a apenas começando"; parafraseando Mino Carta, é de conhecimento do mundo mineral que aquela única estradinha de terra para a entrada e saída da fazenda não daria condições razoáveis para a saída do público ao final do show. Se com o público chegando de forma pulverizada já havia congestionamentos e demora no acesso, o que esperar da saída, com todo o povo indo embora ao mesmo tempo?

 

Não sei se por ingenuidade, incorrigível otimismo ou abuso do espírito roqueiro de hippie velho, fato é que minha imaginação falhou -- e muito -- ao não vislumbrar o que viria a seguir. Se os problemas técnicos não deixaram o Rage nos levar aos últimos degraus do inferno, a (falta de) organização do SWU fez o serviço. Tudo começou quando, logo ao final do último show, me dirigi ao local de onde sairiam os ônibus em direção ao bolsão de estacionamento no kartódromo de Itu, onde paguei extorsivos R$ 50 para estacionar meu carro. O kartódromo de Itu fica a alguns quilômetros da fazenda onde o festival foi realizado, e confiei nos serviços de translado oferecidos -- o transporte de ida à fazenda funcionou bem, sem percalços.

 

Estimei algumas centenas de pessoas à minha frente na fila, só que a quantidade de ônibus prometida era um paliativo frente ao cansaço e às perspectivas mais céticas. Vinte minutos, quarenta, uma hora depois... e nenhum ônibus havia chegado. Nenhum, literalmente. Em meio a essa espera, meu grupo de amigos se dividiu, e alguns saíram pela fazenda à procura de táxis, sem sucesso. Questionamos um funcionário da organização, identificado por uma camiseta e responsável por organizar a fila destes ônibus destinados ao kartódromo. A resposta foi que "eles deveriam aparecer a qualquer momento", embora não tivesse "como prometer um prazo, estabelecer um horário" de quando os ônibus chegariam. Respondi que em uma hora não havia chegado nenhum ônibus, e que eu começava a ficar realmente temeroso em relação ao serviço, já que a fila só crescia. "É, parece que a coisa está complicada mesmo". "Estamos ilhados aqui, então?", perguntei. "Com certeza."

 

Sua sinceridade foi contagiante, e então resolvemos tomar uma medida extrema: caminhar até a rodovia. Bastou dar apenas alguns passos para constatar que outras pessoas estavam tendo a mesma ideia. Muitas pessoas. O que parecia um cenário péssimo e absurdo, uma hora atrás, passava a ser a tentativa mais razoável de resolver aquela situação. A situação, novamente, era dantesca: um congestionamento abissal, em uma estrada de terra empoeirada, mal iluminada e sem seguranças, policiais ou funcionários da organização. E um detalhe especialmente perverso: com as duas faixas da exígua estradinha tomadas pelos carros, vans e ônibus de toda sorte tentando deixar a fazenda, ficou claro instantaneamente o porquê dos ônibus não chegarem para buscar o público. Não chegaram porque simplesmente não se andava na estrada -- portanto, não chegariam tão cedo (fato não divulgado quando se questionava os funcionários na fila).

 

Todo o conceito de sustentabilidade propagado pelo festival ganhou, naquela estradinha, ares azedos e surrealistas. Quanto monóxido de carbono não estava sendo emitido naquele trânsito? Talvez comparável ao de uma pequena cidade do interior, ou de uma Avenida 9 de Julho às seis da tarde. Seguimos, aos bandos, por aquela estrada, inalando aquele misto de fumaça e poeira, entre os carros ou junto à cerca. Às centenas, prosseguíamos rumo à rodovia. De tempos em tempos presenciava-se alguma explosão de raiva, ou a tentativa de entrar em alguns dos ônibus que estavam parados na direção da fazenda (que, após serem abertos a pedido dos caminhantes, rapidamente lotavam, muito antes de chegar ao local do festival).

 

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A chegada na rodovia sepultou qualquer fiapo de esperança que ainda restava. Sem quaisquer táxis ou outra possibilidade de irmos embora, sentamos nas faixas costeiras, junto aos guard-rails, e tentamos descansar. Frio, cansaço, frustração -- e nenhuma informação ou perspectiva de solução. Os primeiros táxis começaram a parar por ali por volta das 3h, 3h15 da manhã. Problema resolvido? Qual o quê. Os motoristas cobravam inacreditáveis e ofensivos R$ 50 por pessoa -- isso mesmo, por pessoa -- para o trajeto até o kartódromo. Com o frio, os mais abastados deixaram as sanguessugas de plantão um pouco mais ricas. Mas a imensa maioria daqueles que estavam por ali continuava desenganada, tentando se proteger do intenso frio (muitos de bermuda, camiseta)  e resistindo à idéia bizarra de ir a pé até o kartódromo. Ou ou outro sortudo conseguiu uma carona, deixando aquela inveja branca em quem continuava ao relento.

 

A solução do problema, ao menos para mim, passou longe da organização do festival. Fui resgatado da rodovia, em frente ao posto de pesagem da Polícia Rodoviária do km 18, por uma amiga solidária. Quando cheguei ao bolsão de Itu, às 4h24, o cenário já esperado: a imensa maioria dos carros continuava estacionada ali, mostrando que foram poucos os que haviam conseguido chegar até ali. Isso 4h24 depois do encerramento do último show. Para aqueles que, como eu, pagaram entre R$ 30 e R$ 50 para estacionar ali.

 

O dado trágico final ficou por conta do que testemunhamos em nossos últimos momentos daquela noite, pouco antes do sol nascer. No caminho até a Rodovia Castelo Branco, pela estrada em que a fazenda se localiza, passamos por vários e vários grupos de pessoas que renderam-se às circunstâncias e apelaram para a medida mais extrema de todas: vencer aqueles quilômetros a pé, pela rodovia, na mais alta e gélida madrugada, em direção ao carro estacionado neste bolsão. E não foram poucas as pessoas que encontramos.

 

Ao final, fica essa sensação. Nunca havia passado por algo sequer parecido, e espero, com todas as forças que me restam em meio às dores que esse calvário infernal me legaram, não passar novamente.

 

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