Aquecimento global provoca migração e dá início a novo mar

Mapa mundial dos oceanos sofre transformação com mudanças climáticas e áreas geladas, onde havia poucos peixes, já veem crescer número de espécies

PUBLICIDADE

Por Jamil Chade
Atualização:

REYKJAVIK - Com um Ipad na mão, um binóculo e uma roupa especial para se proteger do frio polar, biólogos de diversos países saem pelos mares da Islândia em busca de informações sobre o percurso que baleias, golfinhos e outros peixes possam estar fazendo. A meta é tentar entender se essas populações estão migrando de outras regiões do mundo para as portas do Polo Norte e até que ponto as mudanças climáticas estão afetando a população marinha.

PUBLICIDADE

A reportagem do Estado embarcou em uma dessas missões lideradas pela Universidade da Islândia, ao lado de pesquisadores da Itália, França, Alemanha e Estados Unidos. A primavera não apenas garante a luz do sol até as 23 horas na região, mas temperaturas mais amenas, de cerca de 0°C.

O que ninguém discute é que o aquecimento global ameaça mudar os mapas dos mares. Não apenas por conta da elevação das águas previstas pelos cientistas. Mas principalmente diante da transformação radical na população de peixes de cada região como consequência do aquecimento das águas.

Estudos chegaram nos últimos anos à conclusão de que mais de mil espécies comerciais de peixes poderão sofrer uma mudança dramática e migrar de locais onde estiveram por séculos para novas águas mais frias. Mas cientistas não chegam a um consenso se essa migração significará que a população marinha vai se manter estável.

Um dos estudos usados como referência revela que, até 2050, os mares passarão por uma mudança de sua população, com peixes deixando as áreas tropicais, cada vez mais aquecidas, para buscar refúgio nos polos do mundo.

O aquecimento global ameaça mudar o mapa dos mares por causa da transformação das populações de peixes Foto: Jamil Chade/Estadão

Segundo a pesquisa, realizada em cooperação entre as universidades de East Anglia, Princeton e a de British Columbia, 60% da população de peixes nos oceanos até 2050 sofrerão um deslocamento em busca de águas menos quentes. "Veremos esse novo mapa mundial dos mares ainda em nossa geração", apontou o autor da pesquisa, William Cheung.

Um dos aspectos mais relevantes da previsão se refere ao futuro do bacalhau. A constatação é que, com a migração, aquecimento das águas e pesca contínua, a população mundial do peixe poderia diminuir pela metade até 2050. O atum também pode ser um dos peixes que promoverá uma forte migração.

Publicidade

O resultado seria, para diversas partes dos trópicos, a extinção da presença de algumas espécies, o que traria consequências devastadoras para pequenos pescadores da costa da África e na Ásia, principalmente nos mares próximos à Malásia.

Na avaliação do projeto Pesca Sustentável da Universidade de Cambridge, a indústria pesqueira mundial poderá perder até US$ 41 bilhões por conta do impacto das mudanças climáticas. Oceanos mais quentes e mais ácidos poderiam afetar a vida de 400 milhões de pessoas pelo mundo que, principalmente nos trópicos, dependem da pesca para viver. Em seu quinto informe, o Painel Internacional de Mudanças Climáticas também alertou para a situação dos oceanos.

Uns perdem, outros ganham. Para alguns cientistas, locais como Rússia, Noruega e Islândia devem ser os principais beneficiados da migração de peixes. Algumas espécies que eram encontradas apenas no Atlântico, por exemplo, já começam a aparecer nas redondezas da Islândia e das Ilhas Faroe. Outras espécies, como o bacalhau do Pacífico, também já foram identificados no Estreito de Bering.

No mesmo estreito, dados sobre outra espécie de bacalhau revelam que a migração já começou. No ano 2000, o peixe era encontrado em toda a região de Bering. Em 2012, a concentração do bacalhau estava na parte norte do estreito. Estoques de outros peixes que estavam na latitude 75°N há quase 15 anos hoje são encontradas em 80°N.

PUBLICIDADE

Entidades como a ONG Greenpeace já denunciam o fato de que, no Ártico, barcos cada vez maiores de pescadores estão se aventurando nas águas do Norte, em busca de mais peixe e se beneficiando do fato de que a camada de gelo na região é cada vez menor. Nesse caso, o que contribui é o degelo de certas regiões e verões mais longos, permitindo uma "verdadeira corrida ao ouro".

Entre 2005 e 2010, a Greenpeace alerta que o número de navios pesqueiros canadenses que viajaram até o Ártico foi multiplicado por sete. Na Noruega, os barcos nunca estiveram em latitudes parecidas nas últimas décadas, em parte graças às camadas cada vez mais finas de gelo.

"Um novo oceano está sendo criado e, pela primeira vez na história humana, isso vai resultar em uma transformação monumental", declarou o presidente da Islândia, Ólafur Ragnar Grímsson, há duas semanas em uma conferência promovida pela Google.

Publicidade

Poder dos mares. Ele também confirmou que a migração dos peixes já é uma realidade e vem abrindo tensões diplomáticas entre seu país, a Noruega, a União Europeia e as Ilhas Faroe. Antigos acordos entre governos estipulando fronteiras de pesca podem simplesmente não fazer mais sentido em poucos anos.

Um levantamento da Universidade de Queensland confirma a ameaça de que esses acordos passem a ser ultrapassados. Segundo o informe, "a fronteira das espécies marinhas está se deslocando aos polos em uma taxa média de 72 quilômetros a cada dez anos".

Na Islândia, quem não quer perder essa oportunidade são as grandes empresas de pesca. O Estado visitou a sede da poderosa Associação de Proprietários de Navios da Islândia e constatou o otimismo do setor diante das "novas oportunidades". "Dobramos nossas exportações de peixes em cinco anos", comemorou Sveinn Hjartarson, economista chefe da entidade, que é um dos pilares do país.

Novas rotas. A desvalorização da moeda local depois da crise de 2008 ajudou o setor a ser mais competitivo e, diante da migração de espécies e de novas rotas no Ártico, o segmento apresenta taxas de crescimento sem precedentes.

Com um quinto do volume total de pesca realizada globalmente a cada ano, o Ártico promete se transformar no novo Eldorado para o setor. Empresários que atuam no segmento lembram o dia 16 de setembro de 2012 como um marco. Naquele dia, a cobertura de gelo do Oceano Ártico atingiu seu ponto mais baixo da história. Em comparação ao que era em 1979, a cobertura de gelo é apenas metade.

Mas ecologistas e pesquisadores alertam que não existe nenhuma garantia de que a migração e o degelo signifiquem que haverá uma bonança de peixes no médio prazo. Muito pelo contrário. Se num primeiro momento os mares do Norte poderão dar uma impressão de uma superpopulação de peixes, os estudos alertam que isso não será sustentável e que, em 50 anos, a região será o equivalente a um deserto marinho.

Um dos motivos seria o fato de que o mar na região Norte seria profundo demais (até 4 mil metros) para muitas das espécies que teriam de migrar. Outro obstáculo seria o grau de acidez nos mares, diante da absorção cada vez maior de CO2, segundo estudos feitos pelo United States Geological Survey na região do Alasca.

Publicidade

Ainda de acordo com um estudo da Universidade de Tromso, a produtividade de algas nos mares do Norte promete desabar até 2050, em mais um sinal de que a população de peixes também não durará.

A corrida ao Ártico, portanto, pode não ser tão promissora ao longo prazo como o setor pesqueiro da Islândia aposta. Mas enquanto não existe um novo acordo internacional estabelecendo fronteiras e limites para a gestão dos estoques marinhos, a tensão entre governos só tende a ganhar força.

Publicidade

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.