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Quem são e como vivem os povos da Amazônia

Índio que é índio...

"Índio que veste roupa de branco é índio?"

Por Maria Fernanda Ribeiro
Atualização:

 

"Esse índio aí com iPhone parece mais branco do que eu."

 

"E esses índios aí falando inglês?"

 

"Índio que é índio anda pintado e de cocar."

 

"Tem uma aldeia que os índios tem camionete, relógio Rolex. Nem eu tenho isso."

 

Índios Huni Kuin na aldeia Carapanã, no Acre, localizada a 12 horas de barco da cidade mais próxima Foto: Estadão

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Esses são apenas alguns dos comentários que ouço ou leio quando escrevo ou comento sobre algumas experiências que tive nas aldeias ou publico uma foto em que o índio não está vestido com saia de palha, pintado de urucum e com cocar na cabeça. Por isso, esse texto. Há dois meses e meio convivo de maneira mais ou menos intensa com diferentes etnias do estado do Acre, seja quando eles estão em suas comunidades ou nas cidades. E para cada uma das frases acima eu poderia responder que ser índio atualmente não é só, e somente só, a maneira como eles se vestem ou se relacionam com a tecnologia. Ser índio tem a ver com a cultura, com a ancestralidade, com o pertencimento à terra, com a proteção da floresta, com a resistência e com a sobrevivência.

Não sou nenhuma historiadora, mas com um pouco de leitura é possível aprender que cultura indígena foi interrompida - quando não ceifada - em diversos momentos. Durante todo o processo colonização, por exemplo, o Estado colonial e posteriormente o Império e a República buscaram mesclar essas populações indígenas ao restante da coletividade, seja dos súditos da colônia, seja das populações regionais e nacionais. Segundo a antropóloga Lígia Duque Platero, o Estado, juntamente à Igreja Católica e, já no século XX, também as missões religiosas protestantes, criaram políticas de "incorporação", "mestiçagem" das populações indígenas à população nacional. Assim, políticas territoriais e educativas visavam a integração e aculturação dos povos indígenas. Isso significava transformá-los em trabalhadores nacionais, falantes do português e possuidores da fé cristã.

Ainda de acordo com a antropóloga, o nome "índio" é muito controverso, e muitos militantes do movimento indígena preferem ser chamados pela expressão "povos originários", remetendo a existência de seu povo neste território a um período anterior à existência do Estado nacional brasileiro. Muitos povos "indígenas" preferem ser chamados diretamente pelo nome do seu povo: Yawanawas, Ashaninkas, Huni Kuins, Puntanawas.... Afinal, quando os portugueses chegaram ao território que se tornou o Brasil, eles acreditavam estar chegando às Índias. Portanto, os povos originários daquele território somente poderiam ser "índios". O nome "índio", portanto, é o nome dado pelo colonizador aos povos que habitavam essas terras, que se tornaram a América.

Isso só para começar. Mas eu estaria me atrevendo demais em campo tão amplo e novo para mim se desandasse a escrever por aqui com desenvoltura tamanha como se fosse uma especialista no assunto indígena. Sou apenas uma apreciadora curiosa. E uma jornalista. Por isso, passo a palavra para duas antropólogas e três índios que entrevistei. Um deles pessoalmente, o outro via áudio do Whatsapp enquanto passarinhos piavam ao fundo, e outro via Facebook.

Comecemos, então, com as duas antropólogas:

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Casa típica Ashaninka Foto: Estadão

 

 

 

Lígia Duque Platero

 

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

"Ser índio no Brasil hoje é fazer parte de uma grande diversidade, que se auto identifica como indígena; ou que assim são identificados pelo órgão Fundação Nacional do Índio (Funai). Em alguns casos, algumas coletividades somente passam a ser consideradas como indígenas depois de estudos antropológicos, da produção de laudos, para afirmar que determinado povo possui costumes em comum, um passado em comum, a identificação com um ou vários territórios, a identificação com uma língua, ainda que essa possa ter sido perdida com o passar do tempo, devido à influência das políticas de assimilação do Estado. Entre os índios no Brasil, atualmente, estão desde os povos isolados, que não podem ser contatados pela população nacional, sob o risco de adquirirem doenças mortais; até povos evangelizados, que vivem em situações urbanas, às vezes aproximadas às situações de favelas; ou povos que vivem na floresta Amazônica, que possuem redes de contatos no Brasil e no exterior, que viajam, falam línguas estrangeiras, que vendem a sua "cultura" para os não indígenas das cidades dos EUA e da Europa. Ser indígena é fazer parte de uma coletividade com costumes e um passado em comum.

Para alguns povos, ser indígena é lutar pela demarcação de sua terra, ou lutar para que sua terra e sua vegetação continuem sendo preservadas e livres de invasões. Infelizmente, no Brasil, os não indígenas possuem uma visão extremamente estereotipada sobre os povos indígenas. Muito disso é devido à escolarização atual para os não indígenas: os povos indígenas ou originários somente são lembrados nas escolas no "Dia do Índio". Trata-se de estereótipos e, então, o que sobrou dos povos indígenas? A maioria das pessoas pensa que os povos indígenas são parte do folclore nacional, uma fantasia de Carnaval, uma brincadeira para as crianças na escola. Posso concluir que ser indígena é fazer parte de uma grande diversidade, de coletividades com relações de parentesco, com costumes, tradições e trajetórias em comum. Identificam-se, portanto, primeiramente como pertencentes ao seu povo e, dependendo do caso, consideram-se, em segundo plano, também brasileiros. E isso Independe do uso de novas tecnologias, calças jeans, celulares e afins."

 

Índia Huni Kuin preparando a comida em fogo à lenha durante festival que celebrou a cultura indígena na aldeia Carpanã Foto: Estadão

 

 

 

Carolina Comandulli

 

"A visão de que o índio é que aquele que anda nu, com pena, com cocar e que quando veem usando roupa, celular ou assistindo televisão considera que não é mais índio é estereotipada. Essa é uma visão muito limitada porque é muito focada no material, naquilo que a gente consegue ver e ouvir, mas a cultura não é só matéria. Ela é ideia, é pensamento, é espiritualidade. São intangíveis. E as culturas são dinâmicas e não estáticas. A nossa própria cultura é dinâmica.

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A cultura indígena é algo que não se captura à primeira vista e que está intrínseca a todo o aspecto da existência. A leitura do índio é reduzida, mas não cabe a nós dizer pelos índios o que é ser índio. Por muito tempo nós falamos por eles, mas precisamos deixar que eles falem por eles. Precisamos escutar o que eles tem a dizer sobre isso."

 

Então, seguindo o conselho da Carolina, que eles falem por eles.

 

Com vocês, os índios:

 

Índio Yawanawa se pinta com jenipapo na aldeia Mutum, localizada às margens do rio Gregório Foto: Estadão

 

Tashka Pesaho Yawanawa, 44 anos

 

"Ser índio no século XXI é viver na transversalidade, entre o mundo tradicional e o mundo moderno. Não somos índios dos livros de história distribuídos pelo MEC. Somos índios falado por nós mesmos, com nossas virtudes e defeitos. Somos povos originários que têm resistido a tudo e a todos para mantermos vivos fisicamente e espiritualmente."

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Biraci Jr. Yawanawa, 26 anos

 

"Somos muito questionados sobre o modo como a gente tem se colocado hoje na sociedade, sobre como e qual é o papel do índio brasileiro nos dias atuais. A luta indígena tem sido diária desde o tempo da colonização, do descobrimento, do redescobrimento. Há questionamentos positivos e negativos, dos que apoiam e dos que acham que os índios deveriam ficar na floresta, sem acesso à tecnologia, escola e a outros meios que consideramos que podem somar ao modo de vida que temos hoje. Falam que a gente usa smartphones, computadores ou roupas caras e ainda queremos falar sobre simplicidade. Mas são essas as ferramentas que a gente tem para nos proteger desse tipo de ideal que as pessoas têm sobre o índio, mas o que difere é o modo como usamos esse novo aparato, que é para resistir e sobreviver.

Hoje, as nações indígenas estão se organizando, se comunicando na internet e a tecnologia também une os povos no mundo inteiro e fortalece a nossa cultura. E isso sem sem deixar nossas origens para trás e sempre atentos com a nossa essência, que é de conexão espiritual, com uso do rapé, da Ayahuasca, das cantorias. Manter a essência é a nossa resistência maior para provar que ainda estamos vivos, cuidando ainda do que resta da floresta. E as pessoas precisam se conscientizar que estamos ali fazendo isso não é só por nós, mas por todo mundo e que estamos ali para somar e não para que enxerguem a gente como adversário. O despertar da consciência da sociedade está cada vez mais intenso para o cuidar do que ainda temos e assim podemos começar a mudar o rumo dessa atualidade, independente de cor e raça."

 

Yube Huni Kuin, 33 anos

 

"Ser índio é mais do que morar numa aldeia ou falar a língua. É ter sangue e espírito de um povo. Todos nós (índios) já ouvimos comentários sobre usarmos roupas de branco ou celulares e que, por isso, deixamos de ser índios. Ou que se um índio mora na cidade não é mais índio. Um brasileiro que vai morar nos Estados Unidos deixa de ser brasileiro? Não. Esse é o ponto. Sabemos que muito da nossa cultura se perdeu, até mesmo por pressão dos seringalistas, e a nossa cultura ficou congelada por um tempo. Mas agora estamos no processo de tentar recuperar o que ficou perdido, como as festas, os rituais e a nossa língua. E os povos indígenas têm muito orgulho dessa cultura, mas antes a gente tinha vergonha. O orgulho pode ser visto quando você encontra um índio na cidade circulando pelas ruas pintados e com cocar. Ser índio tem a ver com a maneira como nos alimentamos, como moramos, com a caça, com a pesca e como nos relacionamos com o nosso povo e com a nossa família."

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"Permitam-me incorrer em um exagero heurístico. Eu direi que no Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é. Acho que o problema é "provar" quem não é índio no Brasil."

Eduardo Viveiros de Castro, em entrevista à equipe de edição, originalmente publicada no livro Povos Indígenas no Brasil

 

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