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Quem são e como vivem os povos da Amazônia

Onde a notícia da delação contra Temer demorou a chegar

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Por Maria Fernanda Ribeiro
Atualização:

Dia 14 de maio de 2017. Quarta-feira. O jornal O Globo publica a notícia que abalaria ainda mais o Brasil. O país entrou em alvoroço e a delação premiada envolvendo Joesley Batista e o presidente Michel Temer se espalhou como rastro de pólvora pelos quatro cantos. Manifestações em Brasília. Povo revoltado. Fora Temer. Certo? Nem tanto assim.

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No arquipélago do Bailique, localizado na foz do rio Amazonas, a 180 quilômetros de Macapá, a capital do Amapá, era mais um dia sem energia elétrica em que os cerca de 12 mil moradores das comunidades locais, erguidas sobre palafitas, enfrentavam. Somente quem tinha um gerador - e combustível para ligá-lo - assistiu ao noticiário naquela noite. E foram poucos. Jani, o pescador operado de uma hérnia que agora se dedica a produzir pães, foi um deles.

Jani, o padeiro da Vila Progresso e o portador das notícias graças ao gerador Foto: Estadão

 

Na manhã do dia seguinte, era ele quem transmitia os novos fatos aos moradores que apareciam em busca de um saco de pão fresco ao custo de R$ 2 com oito unidades cada. "Viu o que está acontecendo?, perguntava o senhor de cabelos brancos e espevitados. Brasília está pegando fogo, pegaram o Temer numa gravação, teve manifestação em várias cidades, pegaram também a irmã do Aécio e ela está está presa". E o que mais seo Jani? Não sei, só vi as notícias de ontem. O Bailique continuava sem energia naquela manhã pelo segundo dia consecutivo.

O arquipélago, localizado na Amazônia Oriental, é constituído de 53 comunidades, que vivem principalmente do açaí e da pesca. Recentemente o açaí do Bailique recebeu a certificação FSC e agora tem o primeiro produto do mundo a ter esse sistema de garantia internacionalmente reconhecido. A paisagem da região é emoldurada por açaizais, cujo produto faz parte da alimentação local muito tempo antes de ser uma febre no país e, quem diria, no mundo. "Aqui tem menino que fica doente quando não tem açaí para comer", conta uma mãe.

Casa na beira do rio e os pés de açaí no "quintal": paisagem comum pelo Bailique Foto: Estadão

De Macapá até lá são cerca de 17 horas de barco pelo rio Amazonas e o encontro com ondas em fúria é comum. É preciso força para se agarrar na pilastra e um bom remédio para domar o enjoo. Bailique, que é um distrito de Macapá, sofre com o fenômeno das terras caídas, provocado pela força do rio. Por isso, muitas casas correm o risco de desabar. Algumas despencam na calada da noite.

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Desde que a energia elétrica chegou por lá, é mais comum a falta da luz do que a presença dela. Os moradores contam que estão acostumados a ficarem semanas no escuro e até um mês inteiro. É que quando o fio se rompe, custa à companhia de energia descobrir onde é que está o problema. "Se foi um poste na beira da estrada que caiu geralmente a energia volta no dia seguinte, mas às vezes o problema é no fio que passa no meio da mata. Aí, minha filha, até encontrarem onde está, já passou o mês todo", relata um produtor de açaí.

 Foto: Estadão

Antes de o linhão passar pelo Bailique, é assim que os moradores chamam os postes de energia, toda a luz da comunidade vinha dos geradores, que funcionava apenas algumas horas por dia e cujo combustível era cedido pelo governo, que com alguma frequência falhava no abastecimento.

Com a chegada do linhão, veio a esperança das noites iluminadas para os alunos poderem estudar, o congelamento de alimentos, as televisões ligadas nos noticiários e o armazenamento do açaí, preparados pelas mulheres batedeiras - ou batideiras - que, munidas de uma máquina específica para transformar o caroço do açaí em puro creme, trabalham incessantemente. Quando o açaí está pronto para ser vendido, uma bandeira vermelha é colocada na frente da casa. É o sinal para a população saber que ali tem o alimento, que pode ser comprado por R$ 4 o litro.

 

Dona Lucia, uma das batedeiras da Vila Progresso, comunidade do Bailique Foto: Estadão

 

Jani, devido à produção de pães, mantém o gerador sempre a postos, mas no momento do pronunciamento do presidente, na quinta-feira, às 16h, um dia após o jornal O Globo soltar a reportagem, o Bailique continuava sem energia pelo terceiro dia consecutivo e mais uma vez, enquanto no território brasileiro os olhos não desgrudavam das redes sociais e Brasília fervia, no arquipélago a preocupação era mais um dia sem luz e mais alimentos que apodreciam. Dona Luíza, viu as notícias sobre o Temer? Ah, ouvi falar alguma coisa sim. Ouviu o quê? Ah, pegaram uma conversa dele, minha vizinha que me contou.

Sem energia, o único ponto disponível para acessar a internet - um comerciante local possui uma lan house e cobra R$ 4 a hora - também teve o funcionamento prejudicado e foi preciso o sol aparecer, no dia seguinte, para que a placa solar pudesse funcionar. Mas com o vai-e-vem dos picos de energia, o modem queimou. Pelo menos mais dois dias até chegar um novo. E mais uma vez o Bailique se viu distante e isolado das notícias que abalaram o país. Para eles e para boa parte do Brasil sem luz que ninguém vê, isso não é nenhuma notícia nova.

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Moradores trabalham em conserto de ponte na comunidade do Macaco: pés de açaí ao fundo Foto: Estadão

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